(explicação frágil de um último devaneio)
Às vezes penso por que nunca me deixo cair. Da altura deste muro, a transbordar do verde musgo de perfume heterogéneo, estaco e reflicto. Caio, muitas vezes, sem me deixar cair. Olho o empedrado irregular por baixo dos meus pés e, palavra de honra, que não sei por que não me deixo cair. Naquele horizonte longínquo a pingar do céu, uma cascata ténue de luz a abraçar-me, e, num aconchego trepidante, prendem-se-me as órbitas pasmadas naquele fundo eloquente. Coloco todas as esperanças, mesmo as mais apáticas, numa fusão de mãos secas pelo Inverno, em dedos tortos, em estalidos de ossos deslocados, em segredos depositados nas rajadas de vento, num acordar de vozes
- Deixo-me cair?
Vozes essas que se entranham, semelhantes a nódoas persistentes nos ouvidos. E julgo-me louco, ignoro que me desmembro em migalhas de um bolo maior
- Por mim, sim.
E logo na fronteira da pele sinto uma casa com vários alicerces, uma melodia de vários tons, uma cara com várias faces, inúmeras religiões para o mesmo fim, todos os saberes coabitando
(a verdade é que às vezes escrevo e nem me apercebo porquê)
E continuo a persistir na realização como meio de não-realização, talvez como morrer antes de cortar a meta, uma infeliz apneia a sorrir para a morte. Debitar palavras – no fundo, nasci para qualquer coisa próxima do acto de escrever, juntar palavras, deixar pistas para que outros me venham coser, um pleno abandono das peças de um quadro que tão cedo não se completará, certamente assinado, mas sem a harmonia humana: um traço mal calculado, uma cor por utilizar. E tudo isto repito, repito, repito; somente a exaustão de um tema me permite roçar no patamar de uma perfeição débil
- Por mim, não.
Quem sabe se a solução não passa por me atirar ao empedrado, embater com o peso da consciência na rocha dura, o frio do chão no calor da minha pele, deixando-me fluir como que por osmose para a base da terra. Amedronto-me, contudo, nestas alturas em que a coragem me deveria assolar pois a minha queda seria a desgraça de todos os meus fragmentos, das minhas várias faces, dos vários alicerces da casa, dos pequenos fios que me unem os membros. Na falta de melhor e astuta resposta repito-me e, ao fazê-lo, aperfeiçoo-me. Por isso me repito, por isso me repito, por isso me repito, por isso. E, afinal, deixo-me cair.
E morro, como tantos, quase perfeito.
O Senhor Indefinido