27.8.10

O ciclo do ciclo do ciclo

No fecho dos ciclos, há o ciclo de acabar, para este ciclo de terminação, às voltas, rodopiar sobre nós, enquanto nós, às voltas, comemoramos o ciclo da iniciação. Enquanto houver novas expedições.



fvs

20.8.10

Texto indefinido #9

(explicação frágil de um último devaneio)

Às vezes penso por que nunca me deixo cair. Da altura deste muro, a transbordar do verde musgo de perfume heterogéneo, estaco e reflicto. Caio, muitas vezes, sem me deixar cair. Olho o empedrado irregular por baixo dos meus pés e, palavra de honra, que não sei por que não me deixo cair. Naquele horizonte longínquo a pingar do céu, uma cascata ténue de luz a abraçar-me, e, num aconchego trepidante, prendem-se-me as órbitas pasmadas naquele fundo eloquente. Coloco todas as esperanças, mesmo as mais apáticas, numa fusão de mãos secas pelo Inverno, em dedos tortos, em estalidos de ossos deslocados, em segredos depositados nas rajadas de vento, num acordar de vozes
- Deixo-me cair?
Vozes essas que se entranham, semelhantes a nódoas persistentes nos ouvidos. E julgo-me louco, ignoro que me desmembro em migalhas de um bolo maior
- Por mim, sim.
E logo na fronteira da pele sinto uma casa com vários alicerces, uma melodia de vários tons, uma cara com várias faces, inúmeras religiões para o mesmo fim, todos os saberes coabitando
(a verdade é que às vezes escrevo e nem me apercebo porquê)
E continuo a persistir na realização como meio de não-realização, talvez como morrer antes de cortar a meta, uma infeliz apneia a sorrir para a morte. Debitar palavras – no fundo, nasci para qualquer coisa próxima do acto de escrever, juntar palavras, deixar pistas para que outros me venham coser, um pleno abandono das peças de um quadro que tão cedo não se completará, certamente assinado, mas sem a harmonia humana: um traço mal calculado, uma cor por utilizar. E tudo isto repito, repito, repito; somente a exaustão de um tema me permite roçar no patamar de uma perfeição débil
- Por mim, não.
Quem sabe se a solução não passa por me atirar ao empedrado, embater com o peso da consciência na rocha dura, o frio do chão no calor da minha pele, deixando-me fluir como que por osmose para a base da terra. Amedronto-me, contudo, nestas alturas em que a coragem me deveria assolar pois a minha queda seria a desgraça de todos os meus fragmentos, das minhas várias faces, dos vários alicerces da casa, dos pequenos fios que me unem os membros. Na falta de melhor e astuta resposta repito-me e, ao fazê-lo, aperfeiçoo-me. Por isso me repito, por isso me repito, por isso me repito, por isso. E, afinal, deixo-me cair.
E morro, como tantos, quase perfeito.




O Senhor Indefinido

14.8.10

Uma infância vista de cima (20 de 20)

{a partir de agora o mundo
talvez não seja mais das crianças}


o adulto
é a criança vestida
de capa negra.

a criança
é o adulto despido
só com a pele
de tons garridos.

a criança não o sabe
não lhe dêem a capa negra.

7.8.10

Uma infância vista de cima (19 de 20)

{é a melodia da criança infinita}

luz de luz
ao longe ao longe
para onde vamos?
quero saber hoje.

ficar ficar
partir partir
no raiar do dia
como decidir?

para onde vamos?
- algures num lugar que será amanhã.
sabes apontá-lo no mapa?
- é na fronteira do lugar que tem sido ontem.

{saltei do sino da capela para cair no meio da procissão}

30.7.10

Uma infância vista de cima (18 de 20)

{em criaturas de palmo e meio de vida
é difícil esquecer a textura das mãos enrugadas}


estava um jarro de flores fúnebres
por cima do napperon da mesa da sala
uma criança não pedia explicações para a morte
nem para o conteúdo triste dos funerais
e nesse dia só me lembro de não ouvir o avô.

reunida em volta da sala,
estava a família em santo sepulcro,
entre alguns suspiros e comoção
eu permanecia rastilho apagado,
apático aos olhares consternados,
só não aparecia a figura do avô.

até que ao fim da tarde
explodi em choradeira.
é que era a habitual hora
de passear pela aldeia
de mão dada com o avô.

24.7.10

Uma infância vista de cima (17 de 20)

{é a história do meio caminho para o Nautilus
nas cinco mil léguas imaginativas}

enquanto escorregava pela superfície do mercado
não tencionava encontrar-me com a dúvida
de zarpar para a noite ao meio-dia
e obrigado a organizar-me em tripulação
não mentirei mais do que já fui
talvez porque elas,
as cores,
vêm de rajada tirar-nos o tapete dos pés
sondar-nos o limite exterior da pele
e quem sabe enriquecer-nos de membros
a meio passo da exploração
sabendo que elas,
as cores,
espreitam-nos mais do que nós as vemos
pelas frinchas das arcadas
e das ogivas plantadas debaixo dos rodapés
e por isso existe a felicidade restrita
porque elas,
as cores,
seleccionam escotilhas
e cometem insensatos sorteios
parecidos com experiências esdrúxulas
quanto muito para nos avivar o espírito
de que dentro delas,
as cores,
existem mais,
- há quem jure -
cores e cores e cores.

18.7.10

Uma infância vista de cima (16 de 20)

do natural tornei-me cosmético
incubadoras & maçaricos
arrependi-me, voltei ao fundamental
e ainda procuro o cais e a ligação.

tão pouco vamos dando de nós
àqueles que sempre nos irrigaram:
estranhos, uma espécie de avós
que em novos bipedismos voaram.

se todo o mundo fosse premissa
lodo, triunfo, exortação
se em nós coubesse o manual da missa
ou não houvesse lugar para conclusão

{não quero da vida qualquer silogismo
mas até a tensão da fisga se bifurca}


12.7.10

Uma infância vista de cima (15 de 20)

uma maçã na tua boca eu fui trincar,
chamei-te mãe chamaste-me doce,
do teu colo equacionei o mar,
nem que um mísero esboço fosse.

nos dias antes de Édipo
demos ao deserto uma nova coloração,
de rubro o pintámos em traços frénicos
roubámos também às andorinhas a estação.

como os líquenes na pedra húmida
crescemos os dois entre as lascas,
clamei logo por vinculação desmedida
a fim de hipotecarmos, eu bem sei,
a história das nossas fichas

{mãe, o mundo precisa do meu assobio para existir}


6.7.10

Uma infância vista de cima (14 de 20)

que olhar é o meu que só quer o teu?

ao todo vi as pontes do regresso
onde ficámos presos num limbo,
lembro-me dos lancis nas estradas,
nos carros em vaivém pelas estepes,
o bosque onde nos perdemos
- lembras-te dos horizontes esfumados? -
roubei-te a pele
levaste-me os olhos
- passei a ver melhor-
acendi uma vela pela tua rebeldia
para corremos agora em direcções opostas.

temos um fio que serviu de telefone,
cartas que escrevemos em frente aos espelhos.
fiz de ti selo e destinatário
nos dedos pintámos palavras repetidas.

quisemos da vida tanta poesia,
andamos sôfregos às voltas na prosa,
a nossa rua não mais se repetiu.

que olhar é o meu,
o olhar,
que só quer o teu?

{se usar as mãos como binóculos
tenho a certeza que te vejo o coração}

30.6.10

Uma infância vista de cima (13 de 20)

{o meu pai é o zé-ninguém
a minha mãe é a penumbra
o povo é assim
sempre gostou de nevoeiro}

ninguém sabe o que me fez
tirar do corpo todos os âmagos
entregá-los sem nenhum jeito
sem saber se era a minha vez.

o país, tal como a aldeia,
é uma longa espera.

ninguém sabe o que me fez
depositar nas concavidades das órbitas
os meus projectos excedentários
julgando conhecer todos os meandros.

o país julga-se maior que a aldeia
são ambos tão pequenos .

não sei mais do meu corpo
do que a luz na fechadura da porta
mas se há coisa boa na aldeia
é sermos no dia nómadas.

ninguém sabe o que me fez.
nem tu, irmã,
nem eu.

{não temos hora para partir
não temos hora para voltar}


24.6.10

Uma infância vista de cima (12 de 20)

{é um dos meus breves estudos}

hesita sempre que te beijem.
o acto profundo do encontro dos lábios
envolve um fugaz alívio dos músculos,
acompanhado por curta perda de visão.
experimenta:
um lábio,
dois lábios,
encosto,
beijo,
se a vontade pedir,
um beijo,
e quem sabe, talvez mais um
beijo
e outro
beijo.

age sempre na humildade
que um beijo roubado
é altar de igreja vandalizado.

um lábio,
dois lábios,
é a altura
de experimentarmos
um,
quem sabe,
um,
um beijo.


{melhor que a primeira comunhão
são os beijos estreitos
como laços e nós
a promoverem a nossa união}

18.6.10

Uma infância vista de cima (11 de 20)

{tenho por vezes as minhas birras,
finjo esquecer os nossos nomes}


tudo bem diria o descuidado
que em _____ não visse
o retrato do parto
que todos percorremos.

daí querer a raíz funda na terra
e educar-me à ideia de ser pai,
para escolher a mãe ditosa
ela que virá acomodar a vista
dos tempos longe de Peter Pan,
muitos mimos e aconchego de lés-a-lés.

no céu da boca deixarei o eco
e nos humores o capricho
dessa solidão povoada.

{sem um nome para gritar
posso desenhar os teus olhos?}

12.6.10

Uma infância vista de cima (10 de 20)

desejei uma confissão
que trouxesse à manhã
uma depuração desmedida
de prédios cheios de andaimes
em que eu subisse ao mais alto
para nos teus ombros repousar.
não me avisou o tempo
das vertigens castiças que carregas,
hoje imagino-te torre de babel
e cá de baixo atiro-te um beijo
que à tua altura não chegará.

{da primeira paixoneta fica
o medo de cair
de subir lá acima
e de não nos lembrarmos
como se voa}


6.6.10

Uma infância vista de cima (9 de 20)

o avô não sabe mas
vêm escritos nos dias que já foram
o meu nome e o seu em escarlate,
nos rosários e terços tantas contas
dos momentos que faltam pintá-lo.

à mesa faço as vezes de bobo da corte
aguardando mistérios e malabarismos,
enquanto houver velhos para apregoar
o disseminar da tradição da família
algumas vozes em fundos jazigos
não vão deixar de ladrar.

tal e qual as concertinas e bebedeiras
do bisavô de perna coxa
que não serviram para manchar
a genealogia dos pés-descalços.

por isso lhe digo, avô,
que em todos os lugares me perco
e à sua figura inevitavelmente me vergo
exumando as traquinices que outrora sepultei,
erigindo-lhe e admirando os pelourinhos,
eles hão-de percorrer os trilhos da nossa aldeia

{dizia o senhor da paróquia
que podemos esperar
dos avós os teimosos vocábulos
de nós as habituais manias}

28.5.10

Uma infância vista de cima (8 de 20)

{da geografia das palavras
um meio para podermos estar
nas casas das árvores}

com compassos, esquadros e réguas
são supostos círculos, ângulos e dimensões,
na primária quanto muito aprendo a estimar primaveras.

recitamos poetas com colarinho,
os olhos quase fechados de fado,
a professora pede melhor entoação,
espírito, cerimónia e dedicação,
mas na brincadeira da fisga
não se treina a dicção.
e depois vêm os rios e os seus afluentes
e se aos números há tempo de chegar
não nos chegam os dedos e os cochichos,
na multiplicação vem logo a cana espreitar.

nós esticados a olhar para o mapa do Império
a ver Portugal em toda a largura do planisfério
e tão preocupados estamos
ó se estamos
com os sapos deixados a coaxar
nas duas margens do nosso rio.