28.10.07

Todos os meus nomes


Nunca sei como começar o que escrevo, não por não ter nada para dizer ou por me faltarem ideias ou ter bloqueios na escrita. Simplesmente porque aflige-me não conseguir impor a melodia que as palavras anseiam exprimir. Só por isso. Como agora se passa: apenas me apetece escrever, só escrever, divagar, no entanto gosto sempre de, por uma vez, voltar a ler o que escrevi e verificar que as pausas, os silêncios, os dó ré mi fá só lá si dó gramaticais e semânticos estão lá, de maneira que tento marcar o texto de música harmoniosa, sabendo que a melhor parte de cada leitura são os cinco segundos de profundo silêncio, vazio após o fim. São nesses breves segundos que se guardam as notas musicais das letras e palavras e frases, e assim o texto fica para a posteridade, para a eternidade, gravado no nosso corpo e mente. Porém jamais sei se o que estou a compor fica latente nos tímpanos das pessoas, aprecio muito mais a corrente de emoções que me perpassa enquanto deixo o meu braço dançar pela folha branca, ao mesmo tempo que a derramação sincronizada da tinta de cor azul arranha a sua superfície imaculada. Escrevo sempre em papel, sempre. Dá-me prazer desenhar as letras, sou como o pintor que pinta, o escultor que molda, o trolha que constrói, ainda que a caligrafia seja má, o que consequentemente faz perder o valor estético das linhas e curvas azuis do papel. Contudo, o prazer e excitação ficam imprimidos e isso, para meu agrado, ninguém mo pode tirar.
Todos nós somos muitos. O nome que temos apenas nos identifica, não nos define. Nomes temos muitos e variados, tão pobre é aquele por que somos conhecidos. De cada vez que me questionam:
- Como te chamas?
ou
- Que nome é o teu?
Fico a pensar, aturdido mesmo pela complexidade da questão, permaneço estacado, que hei-de responder a esta gente. Normalmente digo aquele pobre que carrego, outras vezes, em que a coragem me assoma:
- Sei lá! Que quer que lhe diga, eu sou tantos!
Prendem-se nos meus olhos, que quererá ele dizer, às vezes fixo o olhar também nesses mirones tentando visualizar pelas janelas das suas almas que nomes os definem e nada encontro. Acabo muitas vezes suspirando:
- Conheço o nome que me deram, não conheço o nome que tenho.
Agora que o meu quotidiano está a mudar, apercebo-me de todos os meus nomes, de todas essas novas pessoas que juntas me definem a mim. Eu sou elas. Se quiserem saber quem sou procurem o Fábio, João, Cecília, Gonçalo, Catarina, Eduardo Joana, Cláudia, Pedro, André, Tiago, Rui, Marta, Margarida, Luís, Bruno, Diogo, David, Rita, Mafalda, Filipa e quando os conhecerem a todos, conhecer-me-ão a mim. Estes são todos os meus nomes. Os meus.
E acabo sempre a escrever com o peso dessa gente toda, dando-lhes voz, não as querendo desiludir, e por isso nunca sei quando acabar, talvez agora pois é altura de dar espaço aos cinco segundos de silêncio. Fim.
( )

F.S.

22.10.07

Depois da meia-noite


O mundo encontra-se diferente, sinto-o nos lamentos sonoros nos fundos das ruelas, no ladrar esforçado dos cães, na ociosidade dos gatos, no vento que sopra desleixado em todas as direcções, no clima que já não é o que era, no desalento das pessoas, nos velhos que não sabem quem foram ou nos jovens que não sabem quem serão, o rebentar das gotas de chuva é frouxo nas janelas das casas, as gargantas cheias de catarro, tosse, tosse e mais tosse, as pessoas estão mais sombrias, frias, olham-me de esguelha, não vá eu traí-las na rotação de um olhar, sussurram para não as poder ouvir, pira-te rapaz, deixa-nos, põem-me de lado, indicam com o indicador esticado o isolamento, enchem-se-me as vistas de humidade, olho-me no espelho, a barba por fazer a tapar-me a pele albina .
- O mundo já não é o mesmo, pois não, Margarida?
No silêncio estático aglutinas o momento, vejo-te no espelho como se fosses minha, só minha, sou um fingidor, as vezes em que te digo que não preciso de ti são as vezes em que te minto, como me sinto alterado, as minhas feições cada vez menos as reconheço, a minha identidade escapa-se-me pelos dedos, somente quando pouso as mãos na tua face me revelo a mim mesmo. Olho para o espelho todos os dias, e todos os dias vejo outra pessoa, outro indivíduo, diariamente:
-Ouve lá quem és tu?
E o indivíduo imóvel, as olheiras sepulcrais sem nada de novo revelar, condenando-me ao fracasso, o vazio da expressão proferindo sentenças implícitas
(ando a tentar escrever um livro e não sei se sou capaz, Margarida)
Comigo cabisbaixo, quebro num estrondo o maldito espelho que tanto me aflige, exteriorizo todas as vísceras mentais que me consomem na dor do momento e o alívio do sangue a escorrer-me pela mão a libertar-me de mim, deito-me no chão gelado da casa de banho e pouco me importo com o que serei, enquanto o tic tac vagaroso do relógio de parede anuncia a meia-noite.
-Amanhã faço anos, Margarida.
E elevo a rigidez dos membros, pousando as mãos como uma concha por cima do coração, certificando-me que ele ainda bate.
Depois da meia-noite.

F.S.

14.10.07

Em breve

Em breve os verdejantes prados emergirão da secura,
as ilusões confundir-se-ão no nevoeiro dos sonhos
e nós, escravos das vicissitudes, ganharemos a estrutura
necessária para projectar os futuros risonhos.
As estradas estender-se-ão no vazio do asfalto,
o pingo de suor a escorrer pelo nariz
como quem se atira penosamente do alto
com os músculos faciais a sorrir, feliz.
E as conturbadas irregularidades do caminho
a assinalar o fim da linha
enquanto desespero por regressar ao meu ninho,
sentir a terra que é deveras minha.
Em breve o Oriente me levará a casa,
e, onde agora sou contaminado pelo exagero das multidões
brevemente terei o silêncio do mundo sem farsa,
onde faço parte de todas as comunhões.
Conto pelas inspirações ofegantes quanto me falta para regressar.
Para o ano voltarei.
Para o próximo mês voltarei.
Daqui a uma semana voltarei.
Amanhã voltarei.
Em breve.

F.S.

6.10.07

Dois corações debaixo da terra

Os dias são sempre os mesmos mas nunca se repetem. Desejá-los novamente é como esperar pelo Encoberto, esperanças desfeitas no espaçamento do tempo, um regaço vazio, é não ter nada para pegar, suster, imaginar suster, e quando assim é começamos a definhar cedo, ideias vagas, pobres a impregnarem-se nas células de memória, pensamos com demasiada reflexão, perdemos o instinto, comodamente instalados na poltrona da ociosidade, a podridão absorve-nos enquanto pensamos estar no auge e depois a queda é longa, silenciosa, não há ajudas, a senhora que se intitula de morte à nossa espera, vem amigo pagar o preço da vida, e nós, simples corpos de carbono e outros afins que havemos de fazer senão segui-la, ainda se saberá se a verdadeira dádiva é viver ou morrer, que avance a mente disposta a pensar nisto.
Foi numa noite de introspecção que alguém desejou infinitamente reviver um dia, um par de horas que de bom grado trocaria por todos estes anos de inutilidade que o haviam assombrado.
Nesse nostálgico amanhecer, o sol acordou preguiçoso, o crepúsculo a esfumar-se no horizonte, o Hospital de Santa Maria, frio e grotesco, a impor-se nos olhos, o homem das castanhas assadas a reclamar a fraqueza do negócio na entrada, a sirene de urgência de uma ambulância a irromper pela estrada, dentro levava mais um que desistira de existir, que se tentara eclipsar do universo. O rapaz de mochila preta esperou como combinado em frente da estátua do Egas Moniz, fazia tremores o suave vento matinal que atingia as pessoas. Aguardou na paciência dos minutos quando na sua vista se instalou aquela silhueta feminina.
- Margarida?
Um aceno afirmativo combinado com uma fragrância indescritível revelou-a tal como ela a via há anos, aquelas linhas esbeltas a definirem um rosto delicado, uns cabelos castanhos a caírem sobre a pele morena.
- Ainda bem que vieste, Margarida.
- Sim. Vamos?
Avançaram destemidos como animais de cativeiro a espreitarem a liberdade no virar da esquina, desceram para a estação de Metro, vazia àquela hora, abraçaram-se e beijaram-se com ternura, fisicamente eram dois porém a mente era só uma, assimilaram a coragem necessária para fazer o que iam fazer e aguardaram soturnamente pelo barulho indicativo da carruagem que rapidamente apareceu. As portas abriram-se lentamente como que a reprovarem as suas atitudes.
- Tens a certeza Fábio?
O rapaz passou a mão pelas costas dela e acomodou-a no seu regaço, enquanto a tivesse teria algo a que se agarrar. As portas fecharam-se com o som habitual, estavam selados nas suas próprias ambições. A carruagem começou a acelerar, assim como os seus corações, dois inseparáveis corações debaixo da terra, o vislumbre do túnel a espelhar-se nos olhos dele, um rumo que ele ambicionava sem fim.
- Claro, vai tudo correr bem, encosta-te bem a mim.
A ânsia de que os carris os levassem à estação que só eles conheciam e onde só eles poderiam estar e ser impediu-os de observar o destino a trocar-lhes as voltas, e nunca chegaram a sair na tal estação.
Hoje, e passados tantos e tantos anos, um homem de idade avançada, de mochila preta, aguarda todos os dias, à mesma hora, na mesma estação, a carruagem que o leve ao seu lugar enquanto negoceia com a morte o preço a pagar pelo seu atrevimento.




fotografia retirada da internet, sem identificação do autor


F.S.