21.3.09

Texto indefinido #4


Da poesia

Afinado é um termo inexistente no que toca a caracterizar os meus ouvidos. Não pretendo com isto dizer que não oiço bem, mas é-me bastante verosímil que sou um incapaz a distinguir a magia que cada som engloba. No dó ré mi fá só lá si dó de cada palavra que pertence à partitura da poesia, sou bastante surdo. Sempre tive uma relação controversa de amor-ódio com ela, fico embevecido quando leio calmamente cada verso alheio (sem, no entanto, ouvir plenamente a melodia que o encerra, um ruído de fundo incomodativo, não do autor que se me dirige, claro está, mas uma barafunda neste meu gira-discos cerebral), porém, fracasso frequente se torna quando pretendo ou tento transpor para um papel qualquer poema que me aproxime de mim. Talvez derive do facto de não poder ouvir bem as composições musicais dos outros poetas que me encantam. É sabida a dificuldade de escrever música quando a sua audição não é possível. E eu não oiço como devia, logo, jamais serei compositor poético competente. Mas depois lembro-me que Beethoven continuou a compor mesmo após ficar surdo. Apercebo-me, através de leituras nocturnas, que Beethoven tal feito conseguiu pois era um génio. Ora, génio eu não sou, quanto muito aspirante caloiro em busca de auto-conhecimento.
A minha poesia tem a pureza de se assemelhar a uma obra imperfeita e inapta, uma música a passar no rádio trespassado pela estática. Damos connosco a sintonizar outra estação, onde o ruído incessante de fundo não perturba.
Quem se atrever a ler-me e possuir a normal acuidade auditiva e poética, concluirá que os meus instrumentos da orquestra encontram-se desamparados. Contudo, para minha salvação, para sossego do peso que imponho nas costas, continuo a escrever poesia, de preferência à noite para, quando acabar de arranhar e molestar o papel dos meus cadernos pretos, adormecer sem ousar ouvi-la por minha conta. Como um pai que rejeita um filho.




O Senhor Indefinido


fs

6.3.09

Estrangeiro ambidestro

Escrevo direito por linhas tortas.
Falo direito para ruas povoadas.
Nas emoções sou um pobre ambidestro.

Não me mates agora,
espera pelo dia e pela hora.

Não morras tão cedo,
tenho todo o amplexo do ar para te dar em segredo.

Não me sussurres e apontes o dedo,
falas uma língua que não compreendo.

A minha pele
- eu, tudo o que é meu e meu nos outros -
é a de um estrangeiro foragido.




fs