28.5.10

Uma infância vista de cima (8 de 20)

{da geografia das palavras
um meio para podermos estar
nas casas das árvores}

com compassos, esquadros e réguas
são supostos círculos, ângulos e dimensões,
na primária quanto muito aprendo a estimar primaveras.

recitamos poetas com colarinho,
os olhos quase fechados de fado,
a professora pede melhor entoação,
espírito, cerimónia e dedicação,
mas na brincadeira da fisga
não se treina a dicção.
e depois vêm os rios e os seus afluentes
e se aos números há tempo de chegar
não nos chegam os dedos e os cochichos,
na multiplicação vem logo a cana espreitar.

nós esticados a olhar para o mapa do Império
a ver Portugal em toda a largura do planisfério
e tão preocupados estamos
ó se estamos
com os sapos deixados a coaxar
nas duas margens do nosso rio.


25.5.10

Texto indefinido #8

Espreitei-me mais uma vez ao espelho e voltei a ver reflectida uma multidão onde eu não me encontrava. E desta vez sorri sozinho por ver reflectidas as bifurcações de tantos trajectos na minha mente. É que até aos quinze anos vivi encantado com o espectáculo do mundo e agora vivo deslumbrado comigo.
Todas as novas maravilhas, mesmo aquelas que não passem da cepa torta, têm os meus dedos e carimbos.



O Senhor Indefinido

21.5.10

Uma infância vista de cima (7 de 20)

{na rua onde nasci não há morte
e as pessoas vão aparecendo}


deste lado da rua
sou eu e mais uns poucos
que damos vivas à existência.
do outro lado alvitram
os castigadores da crua banalidade,
dos pudores escondidos
em castiçais de chama pendente. Alinhar à esquerda
e refilam
por não considerarem a existência
como o todo em si.
ao que eu me rio,
deste lado da rua,
dando vivas à existência,
dando vivas a mim.

percorro, então, os caminhos
para deixar pegadas
fósseis do meu peso na terra
que é minha
porque a sinto
no prolongamento dos dedos

contrai-se todo o espaço
à imponência de um fémur
e segue o meu corpo
que começa n' aorta
acaba onde me sonho
e grito
dando vivas à existência,
dando vivas a mim.

{o mundo é que se vai esquecendo de algumas delas}

14.5.10

Uma infância vista de cima (6 de 20)

{gosto de o chamar princípio da incerteza / incerteza do princípio}

volta para os meus dedos,
coração de papel.

nas escadas espiraladas
vejo-te em cima do meu rosto
com aquela luz de inverno
a incidir na cara fria.

chamo-te
de voz espiralada
contra a maré vaga das negações
que não podem ser mencionadas.

na confusão
das paredes que se fecham
existem fechaduras e arreios
uma abstinência do sangue que se perdeu.

somos filhos perdidos
de um pai incógnito
e a base de toda a corda
que fingimos esticar
é o princípio da incerteza
de quem não pode enxergar.

volta para casa
se a rua não é o teu lar
que oiço e vejo mendigos
que no espírito grandioso
são melhores do que eu

7.5.10

Uma infância vista de cima (5 de 20)

{um dia comprimi as cordas de um violino
sem lhe conseguir calar a ternura}


onde o vento sopra puro,
a música é o silêncio
de um compasso de notas lúcidas
bafejando íngremes colinas.
e nelas deitados lado a lado
a mirar o céu plácido,
somos tantos inquietos
abrindo caminho à unidade.
as estrelas sorriem à chegada do verão
e flutuam ao som dos acordes
porque a música não faria sentido
se flutuar não nos fizesse.
por isso deitados na colina,
onde o tempo nos abandona,
somos jovens eternos,
rebeldes e alheios à maturidade
de que o céu nunca cairá.
e a poesia faz-se
da observação inocente das estrelas.

ora repara na tela azul lá em cima pincelada de luz.
mas eu não sei fazer qualquer poesia.
vou subir à colina e deitar-me.

{decidi comprimir as teclas de um piano
o resultado foi o mesmo}