29.9.07

Alameda dos Sonhos


A calçada tem o seu fim no enorme edifício branco, nota-se o mármore da construção, a frieza da rocha, a crueza da imponência tácita da instituição, duas torres incomensuráveis, sombrias, a erguerem-se nas laterais, o ar fresco trazido pela avenida em frente. Deambulam corpos para lá e para cá, entram, saem, nuns a felicidade estampada no rosto, noutros os olhos descaídos, pequenos na imensidão deste lugar, sentimentos vários a perpetuarem-se no tempo.
- Isto é o Instituto Superior Técnico?
A contemplação do sítio, segunda casa de todos estes seres, as iniciais IST a projectarem-se nas retinas dos globos oculares, aceitação de uma nova vida, vozes sussurrando bem-vindo caloiro, marcadores a picarem a pele, beleza e idiotice da praxe e formalidades inerentes à condição virginal do aluno.
- Aqui vou passar os próximos anos da minha existência.
Com o trânsito incessante de pessoas a movimentar-se, cada sonho sepultado no interior do peito, encerrado a sete chaves, e um corpo, somente um, especado no centro da calçada de olhos fechados, vendo-se por dentro, petrificado de emoções, desabafando
- O que será de mim?
Num rasgo um fluxo de oxigénio a romper pelas narinas, um tórax inchado e um leve rasgar dos lábios a deixar escapar um breve sorriso.
F.S.

22.9.07

Um corpo no crepúsculo


Crepúsculo.
A linha ténue do horizonte desvanece-se, tons alaranjados absorvidos ali no recanto do mundo, amanhã voltarão ou não fossem eles assíduos, pontuais, oito menos um quarto a assinalar no relógio e eles lá vão à vida deles, regressam os espectros sombrios, vejo-os na minha direcção, há vinte e cinco anos que o fazem, esperam que os tons alaranjados se dissipem e avançam eles a estrangular vontades, ar irrespirável, fossas nasais, laringe e traqueia sequíssimas, não há humidade onde não há água, no vácuo não existem os abençoados hidrogénio e oxigénio, é o vazio, o nada, rien de rien. Olho para os resquícios alaranjados:
- Vão voltar amanhã?
Nem sim nem não, remetem-se ao silêncio, temem os espectros tanto ou mais que eu. Tenho pena deles: durante o dia enchem-nos com aquela luminosidade ofuscante, chegam as oito menos um quarto e desvanecem-se na esperança de amanhã voltarem, mas não, temem a noite e de que maneira, oito menos um quarto e piram-se deixando-me aqui neste desalento.
- Vão voltar amanhã?
Não sabem, como poderão saber eles, limitam-se a vir no raiar do dia, fazem o seu trabalho e fogem, para mal de mim que nunca sei se alguma vez retornam, todos os dias uma inquietação, há vinte e cinco anos que
- Vão voltar amanhã?
E durante a noite uma consternação, um desassossego, uma aflição desesperante, será que voltam, não, sim, quem sabe, talvez, desta maneira passando-se as horas, preenchidas por míseros minutos, também eles preenchidos por míseros segundos enquanto eu, de coração apertado, desgasto as unhas interminavelmente quando, de repente, vislumbro nos confins do fio do horizonte uma pincelada de luz a rasgar o céu, levo as mãos à testa, por cima dos olhos amplificando a visão e acabo por ouvi-los, num sussurro familiar a aliviar-me a dor no peito
- Sim.



F.S.

20.9.07

Peregrino !


Que "Ponte" de Lima tão deserta,
no inicio deste dia tão esperado,
neste céu vejo a janela aberta,
um caminho tão longo, programado !

Sou livre neste trilho tão distante,
sou servo de um corpo que enfraquece,
sou eu num desejo apaixonante,
de alcançar o que anseio numa prece !

Percorro passo a passo mais um dia,
aguentando no limite da fraqueza,
encontrando nesta paz a alegria,
que não tenho na cidade com certeza !

Era sonho de criança e aqui estou,
com mochila e vara para cumprir,
uma ambição de ser o que não sou,
de encontrar uma força para seguir !

P.s. Camiño Português de Santiago (1-9-2007 a 7-9-2007)

poema de F.R.

15.9.07

Crónica de um adeus anunciado


O tempo é composto de mudança. A barba recente que me cobre o rosto é sinal disso mesmo, uma mudança que veio para ficar, obrigando-me a ser mais independente, autónomo. Tudo isto tem sido difícil, não só porque não sou muito expansivo, mas também porque não consigo dar espectáculo de mim mesmo a quem não conheço. Introvertido e tímido, talvez seja isso que me chamam, não o nego, não gosto que me definam, que me marquem, definir alguém é sempre um perigo, dizer que este é aquilo ou aquele é isto é passível de erro e a constante metamorfose do homem é prova disso. Os outros, a quem a barba não falta, esbranquiçada pelo passar do tempo, não poupam esforços e incessantemente repetem, bem ao meu ouvido:
- Nunca te esqueças de onde vieste!
Como me poderia esquecer do sítio onde acordei um dia para a vida, para o prazer de viver e pensar, o sítio onde um dia me revi e reiniciei todo um processo criativo em meu redor, fazendo da vida a minha obra de arte? Ninguém me poderá proporcionar tal sensação de liberdade, tal êxtase de saber que posso impor os meus próprios limites, que tudo o que me rodeia é uma extensão da minha mente e que nunca compreenderei o mundo se não me compreender primeiro.
- As tuas raízes estão aqui!
E eles a persistirem, avisando-me que parte do que serei se deverá ao que aqui fui. De facto, muitos passarão o futuro, tal como agora, a tentar desvendar a sua existência – a maior tragédia é não saber o que fazer à nossa vida, alguém o disse e com razão. Da mesma maneira, aqueles que já manifestem uma predisposição para um determinado talento vingarão nas letras, na música, nas artes, na ciência, ou mesmo aqueles que, magicamente, já conseguem ocultar a verdade serão possivelmente os políticos de amanhã da nossa saudável democracia, com todo o respeito pela classe política e por quem domina claramente a arte da ocultação da verdade. Para ver o que acontece, temos de esperar: ou aguardamos que o destino faça das suas, nada mais fazem os deterministas a não ser esperar o que está delineado e traçado, ou, para bem das nossas consciências, esperamos as consequências e circunstâncias que advêm das nossas deliberadas acções. Não há nada melhor que o nosso livre-arbítrio. Paciência, portanto.
E agora, enquanto eu passo pelo portão e vejo as grades a enferrujar (envelhecer era o que se devia dizer pois o tempo também passa por elas, não só por nós) avisando-me que o mesmo me vai acontecer a mim, não sei o que pensar, o que sentir. Olho para trás, sabendo, isso sim, que um dia passaria uma última vez por aquele portão. Chame-se-lhe um adeus anunciado, um adeus que começámos a esboçar aquando da primeira vez que ali entrámos. E acaba aqui esse adeus. É tempo de olhar para a frente, no futuro não faremos outra coisa.
F.S.

9.9.07

O teu piano

Dedilhas o teu piano
em profundos acordes de tristeza
o meu coração profano
como que se enche de beleza
Toca!
Toca!
Pressionas em cada tecla
o som que emerge
nisto que eu aqui tenho dentro
tudo se converge
Toca!
Toca novamente!
E a consternação que cai
em cima do belo piano
não sai um lamento
(só se sofre em silêncio)
Toca!
Por favor, nunca pares de tocar!
Enquanto se ouvir a música
estarás ao pé de mim
e eu te direi, no meio desta acústica:
minha melodia, meu início, meu fim.

(um dos primeiros poemas ridículos)


F.S.

5.9.07

Uma porta que se abre


O som que alastra pelas paredes é o eco supremo da liberdade, o grito de debandada para as almas desamparadas que se estendem nas mesas, por cima dos livros. Os alunos, se é que este termo aqui pode ser utilizado, saem apressadamente da sala, visivelmente aliviados, animados até em demasia, para quem há pouco já era vencido pelo sono. O professor aproveita para ajeitar a gravata vermelha do seu fato e limpar com desânimo o fio de suor na testa, nem teve tempo sequer para acabar de explicar o Cogito, ergo sum de Descartes. Preparadas para avançar estão as duas meninas das dúvidas, que tão habitualmente utilizam o fim das aulas para expor as suas inúteis e maliciosas perguntas, mas a este último espectáculo eu não assisto, após passar a ombreira da porta, disposto a enfrentar a escuridão.
O corredor que se alonga à minha frente mostra-me como sozinho eu estou, rodeado pelo frio, atacado pela angústia e incerteza. Aqui de nada valem os nossos sentidos ou os pontos cardeais para nos guiarmos; nesta penumbra somos guiados para lado nenhum, nem sombra temos, não existimos, somos parte negra do escuro. Corredores como este é o que há mais por aí. Pudesse eu ver o interior das pessoas com estes ingénuos olhos que não veria qualquer vontade, e sem vontade é sabido que não se pode sonhar, e sem sonhar ninguém pode viver. Dizem-me que estes receios, estes pensamentos são o resultado da minha assumida posição pessimista e normalmente perguntam-me como consigo ser feliz sendo pessimista, e eu somente questiono-os: como conseguem viver com tanto desgosto sendo optimistas? E é numa última tentativa que me encho de esperança, e num desespero final, fecho os olhos, dando-lhes a ver a minha própria escuridão.
Porém, quem desespera sempre alcança. No meu braço direito pousa-se uma mão suave, que me desperta. Enchem-se os meus pulmões de ar puro, e agora sim, posso abrir os olhos. Abrem-se intermitentemente, quase a custo, a luz branca é tanta que ofusca. Onde outrora estivera o corredor, repousa aquele familiar banco de jardim, com as árvores por detrás tão grandes que dão a aparência de raspar no céu. O sol trespassa-me a face, aquecendo e aglutinando todo o meu interior. À minha frente estão eles, mirando-me. Se são três, quatro, cinco, não me interessa, desde que aqui estejam a completar-me, a guiar-me, a ser farol e porto de abrigo. Há quem lhes chame amigos, para mim são, pura e simplesmente, eles. Estão comigo desde o meu génesis e estarão até ao apocalipse.
E é sorrindo para mim, em tons de desafio, que fazem abrir uma porta no meio do ar. Acenam-me convidativamente e entram nela, deixando-a aberta. Cresce novamente a vontade dentro do meu corpo, já me é permitido sonhar.
- Esperem por mim!

(Para os meus amigos, incansáveis heróis da paciência, que todos os dias me abrem uma nova porta)


F.S.

2.9.07

Praia da Barra


É Verão e chove lá fora, é Verão e eu tremo por dentro. Montam-se tendas, corpos enfiados em espaços pequenos, sem ar, vidas sufocadas, não se vêem janelas, fechados em nós mesmos, onde andas Verão quente, amigo da minha alma?
Só vejo pedacinhos esvoaçando, sem sabendo o rumo, gotinhas de água a estremecerem nas nuvens, vou cair, não vou cair, nem elas sabem quando cair, como me oriento se nem as gotinhas preparadas para um Verão assim, se estações não vejo nenhuma, foram-se todas, ou se não foram não dão sinal, não marcam posição. Como saber quando Primavera, Verão, Outono, Inverno? Como?

(Julho 2007)

F.S.