30.7.10

Uma infância vista de cima (18 de 20)

{em criaturas de palmo e meio de vida
é difícil esquecer a textura das mãos enrugadas}


estava um jarro de flores fúnebres
por cima do napperon da mesa da sala
uma criança não pedia explicações para a morte
nem para o conteúdo triste dos funerais
e nesse dia só me lembro de não ouvir o avô.

reunida em volta da sala,
estava a família em santo sepulcro,
entre alguns suspiros e comoção
eu permanecia rastilho apagado,
apático aos olhares consternados,
só não aparecia a figura do avô.

até que ao fim da tarde
explodi em choradeira.
é que era a habitual hora
de passear pela aldeia
de mão dada com o avô.

24.7.10

Uma infância vista de cima (17 de 20)

{é a história do meio caminho para o Nautilus
nas cinco mil léguas imaginativas}

enquanto escorregava pela superfície do mercado
não tencionava encontrar-me com a dúvida
de zarpar para a noite ao meio-dia
e obrigado a organizar-me em tripulação
não mentirei mais do que já fui
talvez porque elas,
as cores,
vêm de rajada tirar-nos o tapete dos pés
sondar-nos o limite exterior da pele
e quem sabe enriquecer-nos de membros
a meio passo da exploração
sabendo que elas,
as cores,
espreitam-nos mais do que nós as vemos
pelas frinchas das arcadas
e das ogivas plantadas debaixo dos rodapés
e por isso existe a felicidade restrita
porque elas,
as cores,
seleccionam escotilhas
e cometem insensatos sorteios
parecidos com experiências esdrúxulas
quanto muito para nos avivar o espírito
de que dentro delas,
as cores,
existem mais,
- há quem jure -
cores e cores e cores.

18.7.10

Uma infância vista de cima (16 de 20)

do natural tornei-me cosmético
incubadoras & maçaricos
arrependi-me, voltei ao fundamental
e ainda procuro o cais e a ligação.

tão pouco vamos dando de nós
àqueles que sempre nos irrigaram:
estranhos, uma espécie de avós
que em novos bipedismos voaram.

se todo o mundo fosse premissa
lodo, triunfo, exortação
se em nós coubesse o manual da missa
ou não houvesse lugar para conclusão

{não quero da vida qualquer silogismo
mas até a tensão da fisga se bifurca}


12.7.10

Uma infância vista de cima (15 de 20)

uma maçã na tua boca eu fui trincar,
chamei-te mãe chamaste-me doce,
do teu colo equacionei o mar,
nem que um mísero esboço fosse.

nos dias antes de Édipo
demos ao deserto uma nova coloração,
de rubro o pintámos em traços frénicos
roubámos também às andorinhas a estação.

como os líquenes na pedra húmida
crescemos os dois entre as lascas,
clamei logo por vinculação desmedida
a fim de hipotecarmos, eu bem sei,
a história das nossas fichas

{mãe, o mundo precisa do meu assobio para existir}


6.7.10

Uma infância vista de cima (14 de 20)

que olhar é o meu que só quer o teu?

ao todo vi as pontes do regresso
onde ficámos presos num limbo,
lembro-me dos lancis nas estradas,
nos carros em vaivém pelas estepes,
o bosque onde nos perdemos
- lembras-te dos horizontes esfumados? -
roubei-te a pele
levaste-me os olhos
- passei a ver melhor-
acendi uma vela pela tua rebeldia
para corremos agora em direcções opostas.

temos um fio que serviu de telefone,
cartas que escrevemos em frente aos espelhos.
fiz de ti selo e destinatário
nos dedos pintámos palavras repetidas.

quisemos da vida tanta poesia,
andamos sôfregos às voltas na prosa,
a nossa rua não mais se repetiu.

que olhar é o meu,
o olhar,
que só quer o teu?

{se usar as mãos como binóculos
tenho a certeza que te vejo o coração}