30.6.10

Uma infância vista de cima (13 de 20)

{o meu pai é o zé-ninguém
a minha mãe é a penumbra
o povo é assim
sempre gostou de nevoeiro}

ninguém sabe o que me fez
tirar do corpo todos os âmagos
entregá-los sem nenhum jeito
sem saber se era a minha vez.

o país, tal como a aldeia,
é uma longa espera.

ninguém sabe o que me fez
depositar nas concavidades das órbitas
os meus projectos excedentários
julgando conhecer todos os meandros.

o país julga-se maior que a aldeia
são ambos tão pequenos .

não sei mais do meu corpo
do que a luz na fechadura da porta
mas se há coisa boa na aldeia
é sermos no dia nómadas.

ninguém sabe o que me fez.
nem tu, irmã,
nem eu.

{não temos hora para partir
não temos hora para voltar}


24.6.10

Uma infância vista de cima (12 de 20)

{é um dos meus breves estudos}

hesita sempre que te beijem.
o acto profundo do encontro dos lábios
envolve um fugaz alívio dos músculos,
acompanhado por curta perda de visão.
experimenta:
um lábio,
dois lábios,
encosto,
beijo,
se a vontade pedir,
um beijo,
e quem sabe, talvez mais um
beijo
e outro
beijo.

age sempre na humildade
que um beijo roubado
é altar de igreja vandalizado.

um lábio,
dois lábios,
é a altura
de experimentarmos
um,
quem sabe,
um,
um beijo.


{melhor que a primeira comunhão
são os beijos estreitos
como laços e nós
a promoverem a nossa união}

18.6.10

Uma infância vista de cima (11 de 20)

{tenho por vezes as minhas birras,
finjo esquecer os nossos nomes}


tudo bem diria o descuidado
que em _____ não visse
o retrato do parto
que todos percorremos.

daí querer a raíz funda na terra
e educar-me à ideia de ser pai,
para escolher a mãe ditosa
ela que virá acomodar a vista
dos tempos longe de Peter Pan,
muitos mimos e aconchego de lés-a-lés.

no céu da boca deixarei o eco
e nos humores o capricho
dessa solidão povoada.

{sem um nome para gritar
posso desenhar os teus olhos?}

12.6.10

Uma infância vista de cima (10 de 20)

desejei uma confissão
que trouxesse à manhã
uma depuração desmedida
de prédios cheios de andaimes
em que eu subisse ao mais alto
para nos teus ombros repousar.
não me avisou o tempo
das vertigens castiças que carregas,
hoje imagino-te torre de babel
e cá de baixo atiro-te um beijo
que à tua altura não chegará.

{da primeira paixoneta fica
o medo de cair
de subir lá acima
e de não nos lembrarmos
como se voa}


6.6.10

Uma infância vista de cima (9 de 20)

o avô não sabe mas
vêm escritos nos dias que já foram
o meu nome e o seu em escarlate,
nos rosários e terços tantas contas
dos momentos que faltam pintá-lo.

à mesa faço as vezes de bobo da corte
aguardando mistérios e malabarismos,
enquanto houver velhos para apregoar
o disseminar da tradição da família
algumas vozes em fundos jazigos
não vão deixar de ladrar.

tal e qual as concertinas e bebedeiras
do bisavô de perna coxa
que não serviram para manchar
a genealogia dos pés-descalços.

por isso lhe digo, avô,
que em todos os lugares me perco
e à sua figura inevitavelmente me vergo
exumando as traquinices que outrora sepultei,
erigindo-lhe e admirando os pelourinhos,
eles hão-de percorrer os trilhos da nossa aldeia

{dizia o senhor da paróquia
que podemos esperar
dos avós os teimosos vocábulos
de nós as habituais manias}