11.12.07

Janela sem paisagem


Em bicos de pés, como uma criança curiosa em busca de presente, tento enfiar o olhar através da janela, cara esticada, olhos semicerrados a contrariar a miopia que teima em me desfocar as imagens. Fecho intermitentemente as pálpebras, por favor luz, deixa-me vislumbrar o mundo, a minha inapta retina não sabe o que fazer contigo, por vezes odeio o sol por não me deixar ver as coisas como elas são e como os outros me dizem que são. Suspiro, inspiro, expiro, lembro-me, como se fosse hoje, eu virado para o meu pai, em cima de uma cadeira de madeira tentando com pouca eficácia espreitar por esta mesma janela.
- Pai, não consigo ver nada.
O meu pai condescendente, a palidez da cara ainda mais pálida, as mãos nervosas, não paravam quietas, mexiam-se para lá, para cá, mais uma vez para lá, outra vez para cá, se não estivessem presas pelos pulsos onde andariam. Pousava então a mão na minha cabeça, despenteava-me o cabelo arranjadinho, risquinho ao meio como imperava na altura, suspirava, inspirava, expirava, aconselhando:
- Sossega filho, um dia hás-de ver.
- Quando, pai? Quando?
Não respondia, as mãos voltavam à sua dança, como retenho na memória os passos desse bailado, os dedos miúdos, só pele e osso, tremiam que nem varas, eu estacava o pensamento, aplicava toda a energia mental na esperança que o meu pai, por óbvia telepatia, ouvisse:
- Por que tremes tanto, pai?
Talvez me devolvesse um pensamento tremido, imagino a inquietação que ia dentro daquela mente, de quando em quando um lenço na testa a enxugar a humidade acumulada, uma respiração mais dolorosa, sonora, sentava-se na cadeira como se uma maratona tivesse corrido, dava espaço ao sono para o invadir e quando este vinha, na calada da noite, cerrava os olhos como que avisando não voltarei, ficava tempos e tempos no mundo dos sonhos, comigo sentado a inspeccioná-lo, ao mesmo tempo esperando que as sopas das refeições me permitissem chegar convenientemente ao parapeito da janela e soltar:
- Sim pai, já vejo.
No entanto ele continuava no mundo dos sonhos, questionava-me sobre que mundo o meu pai realmente idolatrava, o real e aborrecido, ou o imaginário e extaseante. À medida que o tempo se estendia, mais as sopas faziam o seu trabalho, mais tempo ele permanecia no mundo dos sonhos. Quando, por sorte, o apanhava acordado:
- Pai, continuo sem ver nada.
- Sossega filho, um dia hás-de ver.
Dizia que sim com a cabeça, num movimento cada vez mais lento, imperceptível a indivíduos mais distraídos, até que um dia não voltou a acordar, decidira indubitavelmente permanecer no mundo dos sonhos, quem era eu para o censurar. Derramei as lágrimas da ocasião, que as do sentimento vou derramando ao longo dos dias, ainda hoje, como as sopas não terminaram o seu trabalho, em bicos de pés tento espreitar a janela, olho olho e olho e contudo
- Não consigo ver nada.
Penso no meu pai, onde andas, que fazes, que contas, fazes-me falta. Olhando e olhando para a janela sem paisagem não defino uma forma, uma mísera cor. Projecto, sim, nesse vidro translúcido, a palidez da cara, o bailado infinito das mãos, o espírito de progenitor empenhado e assim
- Pai, vejo tudo.

F.S.

5 comentários:

Anónimo disse...

Bem primito...cada vez me surpreendes mais..adorei este texto..mesmo mto..continhua assim...Beijinhos*

Anónimo disse...

ui maninho como a leila disse cada vez me surpreendes mais... está realmente muito bonito o teu texto...nunca deixes de ser quem és e de fazeres o que tu realmente sabes fazer... beijinhs * gmdt *
Carina

freespirit disse...

Aprender a ver não consta das competências obrigatórias ao ser humano. Mas quer-se ver, ver, ver tudo, vamos ver.

Felicidade a de poder ver pelas lentes que a imaginação me oferece.

(por falar em ver, afinal, não vou precisar de usar óculos, vejo até muito acima da média, disse me o "oftaldoctor", preciso é de descansar de vez em quando. Não posso ver tanto, tenho que imaginar o que veria ;))

abraço.

joana simões disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
joana simões disse...

tal como a tua priminha e a tua maninha, considero que o texto está belo... um tanto intrigante como antes já te dissera em relação a outros textos...mas só assim serias tu e como a tua mana diz.. continua a fazer o que melhor sabes fazer!!


há sempre algo remotamente escondido na nossa mente e no nosso coração e quando descobrimos sentimos uma sensação de alivio e alegria como nunca julgamos poder sentir!!
beijinhos*