30.9.09

quanto baste (4 de 5)

4.os eufóricos postais eufóricos.


- e fizemos tudo para enlaçar o arco-íris nos nossos filhos -
sirenes da anunciação em embalo de um suave diapasão
ecoaram como gritos nas várias camadas atmosféricas,
fecundaram os dias dos maiores jardins suspensos,
- e fizemos tudo para enlaçar o arco-íris nos nossos filhos -
deflagraram incêndios fátuos, construímos novas vigias,
em arcas de Noé pingentes encabeçámos o repovoamento,
e com pombas brancas e folhas de oliveira nos crispados Édens
modificámos o cabo das tormentas, sublimes rotas de irmandade
- e fizemos tudo para enlaçar o arco-íris nos nossos filhos -

Nas flores da Primavera imprimimos inscrições de volúpia,
ao deus-dará agendámos a purificação dos canteiros,
cozinhámos actuais segredos de colmeias automatizadas,
e ao longo da costa edificámos viveiros de responsabilidade
com águas salgadas promovendo osmoses e gargalhadas.
De noite fundámos frescos planisférios, fronteiras obtusas
abertas à livre circulação dos livros e das histórias,
criámos pontes circulares e esfuziantes de longo alcance,
almejando ser o coro de uma tragicomédia popular
- e fizemos tudo para enlaçar o arco-íris nos nossos filhos -

Das margens dos rios enviámos foguetões da discórdia,
ao universo roubámos a omnipotência cósmica,
capazes mergulhámos mais fundo que as sombrias marianas
e no imo de camadas concêntricas traçámos segmentos de recta.
Num compacto de vulcões e terramotos alterámos a face da terra,
observámos a deriva das placas litosféricas, o afundar dos pântanos,
arquitectando castelos de areia e monumentos de copas e de paus,
espadas e ouros deixando ao desvario dos mercenários vindouros.
Caímos na redundância de enfeitar os andrajosos e como pais fizemos tudo
- felizes fizemos tudo para enlaçar o arco-íris nos nossos filhos -

20.9.09

quanto baste (3 de 5)

3.os aglomerados de corações equiláteros.


Vês em alcance curto pérolas de alfaiates,
esfinges de múltiplas civilizações, ovações de gáudio,
imperadores, tiranos e ditadores de alpendres,
vês as figuras que te dão peso aos calcanhares
e em todas essas vem uma impressão de mulher.
Vês num compasso a genialidade do género
que pela calada das noites os caminhos tem clareado.
Vês e questionas-te, quando virá o estio de uma vela ancorada?
para quando sussurrarás inoportunas confidências
e fecharás os olhos aos defeitos esguios de uma mulher-caravela?

Na iniciação de horizontes conjugados em pretéritos anacrónicos
basta um sorriso encalhado no peito, aluviões e vertigens,
para um homem mau rezar mais alto e descobrir salvações,
para um homem bom estudar novas contemplações e odisseias.
Vês – ou imaginas? - um mundo calejado de penélopes tricotando
na espera de um argonauta criador de novelos de saudade.
Do seu regaço interpela-nos o mito, renovadas convenções e estímulos,
circum-navegamos a realidade, tomamos o fantástico como referência,
e ninguém lhe sabe o fim, ninguém pode escamotear o anseio
de uma mulher-perene, mulher-enxuta, mulher-razia, mulher-mulher.

Vês arrepios de percentagens, ausências de acontecimentos certos,
reacções químicas em cálices de fogo, miudezas de corpos floridos.
Vês em ti uma consequência de brutalidades, ravinas suaves do inferno,
e carregas nos ombros, fêmea adornada, uma orquestra sinfónica de gaivotas.
- um dia pedir-te-ei em namoro nos jardins do Palácio de Cristal –
E não obstante o timbre ameaçador dos corvos zelosos,
os olhares indiscretos dos linces, o silêncio cúmplice que nos aparta,
saberei aguardar, aguardar que os nossos corações equiláteros
possam coabitar em uníssono, à medida que a ínclita senhora
me perfure o peito até este transbordar de humanidade pelos poros.

10.9.09

quanto baste (2 de 5)

2.os hieróglifos do embaraço.


Pedras de roseta nas calçadas, códigos de hammurabi nos tribunais,
emergem novas ordens nos concílios, novos fraques nos manda-chuvas,
chegar ao amanhã não é comum sinónimo de respeito pelo dia de ontem:
são subterfúgios de espingardas lascadas como cadeirões de vime,
uma recente hermenêutica fugitiva, leis perdidas nos escarpados.
As pobres civilizações que apenas na arte ganham vida
tingem de rubicundos ferimentos os álbuns dos nossos pais,
imprimem estigmas nas cartilhas dos verdes benjamins
e fazem-nos crer como cegos que ainda aguardam os seus olhos
que ao longe ainda vem la Liberté guidant le peuple.

Por muitas Guernicas presas debaixo das línguas negras
ardores fulminantes ou balas embandeirando em arco,
quantas cartas matreiras irão perecer à mortificação das gramáticas?
quantas significados se tornarão ambíguos e risíveis?
Escrever o erro é assentar arraiais na exactidão humilde,
colocar livros de depuração nas estantes das casas,
é exumar aflições e incinerá-las a bom gosto,
é dar substância ao vácuo, torná-lo fértil caruma.
Porquanto há uma saciedade de plátanos a mitigar
aproveitemos o fastio dos nossos rostos na água.

Sabemos de tolerância como da ínfima distância entre os átomos,
como da precoce fermentação do sangue que há-de coagular.
De todas as plantas cortámos os grossos caules de seiva,
elaborados em alquimistas retrocedemos à irracionalidade.
Tanto o fizemos que acabámos num vislumbre de jazigos
lamentando a degradação de um humano desconhecido
sem estátua simbólica para calidamente nos deixar embevecidos.
O estado do povo é assim um declínio da jovialidade dos pomares
e como familiares ausentes visitamos as lápides e o sadios epitáfios:
outrora aqui, nesta cuba de fraternidade, existiu um povo genial.