24.4.08

Promiscuidade


Ela,


Promiscuidade arcaica encosta aquela mulher à parede. O corpo nu e frágil apalpando às cegas as rugas da tinta de plástico, a carpete sedosa e fria acariciando-lhe os pés. Chamar anjo a tal ser mais não seria do que verdade. Concomitante com o papel de humano é o papel de anjo. Não há adornos. Pele morena, herança das comadres do café importado do Brasil. A cara leve, os olhos verdes felinos, o nariz empinado, o pescoço hirto pedindo uma mordidela nas carótidas, os seios destacados, o umbigo curto, a sagrada basílica acolhedora iniciando as pernas longas, os pés pequenos o necessário. Asas não lhe servem quando o sopro dos machos de pronto a conduzem a bom porto. Por apurar está o papel do diabo nesta criação, se a deus a podemos atribuir.


Ele,


O homem presente na sala mira a gazela indefesa, qual tarântula desorientada em caixa de papel. Sabe onde quer ir: confessar-se na sagrada basílica acolhedora. Consciência tranquila pois sabe que será bem-vindo. Note-se que os lábios do anjo, gazela aos olhos do homem, não foram descritos. Porque são dele e é neles que mergulha procurando novos impérios. Perfeita comunhão humana. Já foi dito outrora, não custa relembrar, deus é bom mas o diabo também não é mau.








F.S.

10.4.08

O Alentejo à distância de um piano


Para a Margarida,
De caneta na mão,
O piano ali tão perto.


Quando o piano começar a tocar chegou a nossa hora. É a mais pura das verdades. No momento em que o dedo roçar a medo a tecla da nota inicial está a dar ordem de partida. Não poderemos fazer nada para o evitar, mesmo que não acredite no determinismo das coisas afinarei o ouvido, levarei a mão à orelha direita, oiço bem das duas mas a direita tem uma harmonia incomparável, e com os tentáculos presos ao meu pulso, como um búzio onde o mar não sopra
- Olha, está a tocar, é a nossa hora.
Dar-te-ei a minha mão grossa, respiraremos fundo, não muito, não vá acontecer enchermos tanto e voarmos daqui sem razão, temos raízes fundas enterradas neste pedaço rectangular vizinho do mar. O meu carro será o meio que levará ao fim. Por que achas que tirei a carta? Somente para me prevenir, estivesse eu longe de ti na altura do génesis do piano, o nosso piano, e de pronto correria ao teu encontro, num rasgo pelo asfalto das planícies do Alentejo, com o coração feito num saltimbanco intemporal, despojado de ironias e futilidades, embebido na realidade, por mais cruel que ela seja, pelo menos é ela, objectiva, inegável. Gosto tanto de viver da fantasia, não sei se a realidade me chocará quando nos apelar ao encontro, espero que seja simpática connosco e que não desiluda a amiga ilusão, real de tão virtual. Sabes bem os meus receios, não sabes? Eu sei que sim, os teus olhos comovem de tão honestos, a tua face enternece de tão subtil. Quando chegar ao teu encontro, estarás à minha espera
- Vamos que já se faz tarde.
Galgarei os traços contínuos da estrada, pisarei o acelerador como dele dependesse a minha vida, a nossa, chegaremos ao local que apenas nós conhecemos ao cair da tarde, isto se o piano for gentil e não nos convocar a meio da noite. A casa estará apta a nos receber, para isso foi concebida, olhe-se para ela: pequena, acolhedora, guardada do veneno das multidões, virada para o céu, é nele que nos vamos escapar, perder por uns míseros minutos. Deveriam durar o horror dos dias, contudo os paradoxos da vida todos nós conhecemos: faz curto o que é bom e alonga as intempéries. Por isso levo a vida com uma leviandade tal que me parece inútil persistir no erro, junto migalhas diariamente na tentação de as encaixar e formar a teoria do tudo, revelar-me a mim próprio e a ti. Sabes bem como o desejo!
Como anseio pela hora! À noite, qualquer coisa me diz que será à noite que o fio se desenrolará, depois da chamada e do galgar do Alentejo, ambos deitados sobre o peso de nós próprios, os corpos dormentes na aridez fria do solo, mirando o céu estrelado ali tão rente à ponta do nariz esticada
- Vamos fechar os olhos?
E fechamos, damos as mãos, entrelaçadas para não mais nos largarmos, a realidade e ilusão fundindo-se, acto há muito por fazer, nós os seus iniciadores, alguém tinha de se chegar à frente e fazer o necessário. E por uns minutos, uns míseros minutos, silenciados pelo fantástico ali na ponta do nariz, deitados lado a lado no Alentejo.
Não acabo de escrever o que tinha pensado pois coloquei os meus tentáculos no ouvido como um búzio onde o mar não sopra e ouvi-o. Juro que ouvi. Vou buscar o carro.
- Vamos que já se faz tarde.
É sempre tempo de nos deitarmos sobre o peso de nós próprios.
F.S.