29.12.07

A melodia dos esquissos #2




The Verve - Bittersweet Symphony
F.S.

24.12.07

Natal de olhos fechados a meio


Nem dou conta da sua chegada, fins de Outubro e começa a manifestar-se nas montras das lojas, monumentos iluminados por um caleidoscópio de cores, vermelhos a piscarem enquanto os verdes piscam e os azuis piscam e os amarelos piscam porque os brancos também piscam, piscando meus olhos intensamente, repetindo-se um ciclo infinito de piscadelas inebriantes no compasso das melodias com critério escolhidas, nota-se pelas filas de pessoas embevecidas por tal aparato multifacetado, tanto ficam fascinadas que depositam o dinheiro nessas caixas registadoras que tanto fará felizes as pessoas engravatadas que vivem dele como do pão nosso de cada dia, ainda bem, para consolo das nossas almas, que nascemos tão solidários. Não dou conta porque o tempo deixou de ser meu, eu sou dele, uma folha branca no qual vai desenhando figuras cada vez menos delineadas, espessas rectas paralelas com finas parábolas, hipérboles sufocando triângulos que acabam por se desmoronar e a folha acaba por ficar rasa, as rédeas que outrora as minhas mãos continham e asseguravam deixaram de manobrar todo este bicho, choro pois sou feliz, sorrio pois sou um traste, meu cérebro vive na ilusão do bem estar, não me atrevo a abrir muito as pupilas dos olhos, acabaria com o circo em que habita, no natal ando de olhos meio fechados, enevoando-os, minha avó, enquanto faz os doces da época com a delicadeza de quase um século:
- Não gostas do Natal?
Como me apetece responder sim vindo do fundo do que temos cá dentro, verdade é que adoro, mas é um sonho avó, perdeu-se tudo, se é que alguma vez ganhámos, fecho os olhos a meio para não chocar o cérebro, as luzes servem de analgésico temporário, sou o meu próprio messias e nem de mim consigo tratar quanto mais de milhões de corações, o fatalismo atinge-me e eu
- Serei tolo mãe?
A resposta pouco me interessa, tolo nasci e tolo morrerei porque tento ser feliz e feliz não se alcança, é-se, se chegarei um dia a ver brilhar a estrela que perdura no topo da árvore que, com afinco a família prepara, é uma dúvida para mim, apenas me habituarei ao delicado som de cada
- Feliz Natal,
Combinado com os desejos de tudo de bom, para o ano aqui estaremos mais uma vez, juntos entoaremos, com graça divina
- Feliz Natal,
E contudo, também a minha boca moldando um
- Feliz Natal,
Porque me resigno e perco a clarividência, porque as contradições definem todo o meu ser, sou um presente sem surpresa pois jamais serei embrulhado, ficarei como as luzes a piscarem
- Vermelho, Azul, Verde, Azul, Amarelo, Branco, Verde, Vermelho,
Fechando eu a custo e a medo os olhos, iludindo a ilusão, depositarei as poucas notas que tenho naquelas caixas registadoras, não conseguirei dormir no frio da noite, todos os dias do ano, e no dia vinte e cinco de Dezembro as crianças a escalarem o pinheiro de Natal, elas nem sabem nem sonham e no entanto esbugalham os olhos enfiando a estrela brilhante no lugar a ela reservado.


F.S.

11.12.07

Janela sem paisagem


Em bicos de pés, como uma criança curiosa em busca de presente, tento enfiar o olhar através da janela, cara esticada, olhos semicerrados a contrariar a miopia que teima em me desfocar as imagens. Fecho intermitentemente as pálpebras, por favor luz, deixa-me vislumbrar o mundo, a minha inapta retina não sabe o que fazer contigo, por vezes odeio o sol por não me deixar ver as coisas como elas são e como os outros me dizem que são. Suspiro, inspiro, expiro, lembro-me, como se fosse hoje, eu virado para o meu pai, em cima de uma cadeira de madeira tentando com pouca eficácia espreitar por esta mesma janela.
- Pai, não consigo ver nada.
O meu pai condescendente, a palidez da cara ainda mais pálida, as mãos nervosas, não paravam quietas, mexiam-se para lá, para cá, mais uma vez para lá, outra vez para cá, se não estivessem presas pelos pulsos onde andariam. Pousava então a mão na minha cabeça, despenteava-me o cabelo arranjadinho, risquinho ao meio como imperava na altura, suspirava, inspirava, expirava, aconselhando:
- Sossega filho, um dia hás-de ver.
- Quando, pai? Quando?
Não respondia, as mãos voltavam à sua dança, como retenho na memória os passos desse bailado, os dedos miúdos, só pele e osso, tremiam que nem varas, eu estacava o pensamento, aplicava toda a energia mental na esperança que o meu pai, por óbvia telepatia, ouvisse:
- Por que tremes tanto, pai?
Talvez me devolvesse um pensamento tremido, imagino a inquietação que ia dentro daquela mente, de quando em quando um lenço na testa a enxugar a humidade acumulada, uma respiração mais dolorosa, sonora, sentava-se na cadeira como se uma maratona tivesse corrido, dava espaço ao sono para o invadir e quando este vinha, na calada da noite, cerrava os olhos como que avisando não voltarei, ficava tempos e tempos no mundo dos sonhos, comigo sentado a inspeccioná-lo, ao mesmo tempo esperando que as sopas das refeições me permitissem chegar convenientemente ao parapeito da janela e soltar:
- Sim pai, já vejo.
No entanto ele continuava no mundo dos sonhos, questionava-me sobre que mundo o meu pai realmente idolatrava, o real e aborrecido, ou o imaginário e extaseante. À medida que o tempo se estendia, mais as sopas faziam o seu trabalho, mais tempo ele permanecia no mundo dos sonhos. Quando, por sorte, o apanhava acordado:
- Pai, continuo sem ver nada.
- Sossega filho, um dia hás-de ver.
Dizia que sim com a cabeça, num movimento cada vez mais lento, imperceptível a indivíduos mais distraídos, até que um dia não voltou a acordar, decidira indubitavelmente permanecer no mundo dos sonhos, quem era eu para o censurar. Derramei as lágrimas da ocasião, que as do sentimento vou derramando ao longo dos dias, ainda hoje, como as sopas não terminaram o seu trabalho, em bicos de pés tento espreitar a janela, olho olho e olho e contudo
- Não consigo ver nada.
Penso no meu pai, onde andas, que fazes, que contas, fazes-me falta. Olhando e olhando para a janela sem paisagem não defino uma forma, uma mísera cor. Projecto, sim, nesse vidro translúcido, a palidez da cara, o bailado infinito das mãos, o espírito de progenitor empenhado e assim
- Pai, vejo tudo.

F.S.

2.12.07

O mundo todo no escuro


- Fala baixo ou ainda nos ouvem!
Realmente devia fazer isso, isto é nosso, fomos nós que o construímos, que demos o primordial sopro de vida, somos criador e criação. Pudesse eu ver através da bruma, este negrume que me inundou as vistas, e vê-la-ia aqui ao meu lado, com uns olhos zangados, extremamente zelosa, fêmea protectora da sua cria, mãe divina de uma obra perfeita.
- Tens razão, o melhor é falar mais baixo
E nisto, nesta escuridão ofuscante, começamos a sentir, a ver, a cheirar. No fundo é este o propósito desta nossa máquina de viver. Há quem estupidamente insulte esta intenção de sentir tudo e de todas as maneiras, gozam dizendo que estar dentro de um armário, enfiados no meio do escuro, é tudo menos uma máquina de viver. Que sabem eles? Nada. Perdoa-lhes porque não sabem o que dizem, nunca assimilaram este rodopio de sensações, costuma resmungar ela.
Qual é o mal, pergunto-vos a vocês, guerreiros da ociosidade, qual é o mal? Por que não pode o mundo estar aqui, abandonado no interior destas paredes de madeira à espera que o venham sentir? Por que não pode ser aqui o centro de massa desse bravo mundo, que vocês, pior do que terem abandonado, não ligam e se importam? Abram os olhos!
Porque o mundo é um armário por abrir.


O Senhor Indignado,
F.S.