19.1.08

Pequenos fios


Não queria que as coisas se passassem assim, escolhas feitas, vidas destinadas, sonhos esmorecidos na escalada de cada noite, euforias tresloucadas no pedalar das horas, vou, não vou, fico, não fico. Terrível é o acto de decidir o futuro, amanhã farei tal coisa que terá tal efeito e afectará determinadas pessoas. Prefiro não pensar, não agir, arrastar os acontecimentos até esticá-los ao ponto de ruptura, puxam-me e puxam-me, cordões à volta do pescoço e peito, fechando, bloqueando, impedindo, mas deixo que aconteça e costumo rebentar por dentro, por fora armado em muro de Berlim implacável, por dentro a esvair-me em rios de desalento, afluentes de algo maior, será que nasci morto, seco, condenado a viver uma vida fechado dentro de um corpo, obrigado a vislumbrar o mundo como se espreitasse pela fechadura da porta, será que a única liberdade me concedida é decidir falecer socialmente e esperar que o corpo se transforme em pó dos tempos, serei um monte de partículas agregadas que anseiam separar-se, os meus membros serão prolongamentos de uma vontade inócua, superficial?
(tudo o que escrevo parece-me merda, o que digo merda e o que faço merda)
Espero agora que as coisas se resolvam sozinhas, pequenos fios controlam tudo o que se passa, não mexo uma palha para dominar a minha queda, quando cair será para o chão, pouco alarido se fará porque nada há para dizer, uma pessoa cai e cedo ou tarde se levanta, arrebita, pois os pequenos fios aí andam, unindo cada pedaço de nós, assim que um de nós cai, o movimento de outro logo nos eleva, as quedas servem para avisar não nós mas os outros. Daí o peso das minhas decisões futuras a enevoarem o pensamento, amedronta-me cortar os pequenos fios que me ligam ao exterior, ténues cordões umbilicais que me agarram a este lado da barricada. Cinquenta anos nos ombros e receio decidir, outro meio século me pode esperar até eu embarcar na derradeira carruagem e hesitarei sempre, a boca fazendo um trejeito à medida que me pedem razões e punho em cima da mesa, perguntarão que homem sou eu, onde anda a minha coragem, destreza, rigor, e eu baixarei obviamente a cabeça, sou o que sou e pouco mais, pessimista, realista ou optimista, alguma coisa hei-de ser, eu mesmo enquanto entidade que pensa, vive e respira e todos os santos dias, como desde pequeno o faço, lamentando a crueza de viver uma vida acompanhado para depois morrer sozinho.
F.S.

9.1.08

Noite plena de escuridão

Chegou.
Alarmou as almas desamparadas
e o dia amanheceu escuro,
negro, vil, vencido.
Na pulsação que brotava dos corpos
a esperança erguia-se
como pêndulo da respiração.
Ouviu-se um subtil sopro,
as almas inquietaram-se na perda da herança,
rogando a todos os deuses.
Mas o sopro não voltou,
o mundo desabou,
o leque das luzes expirou
e a noite escura venceu.


F.S.