28.12.08

Palavra de honra que gosto de ti, tio


Para o Tio Tozé,
meu tio,
meu amigo.


É no deslumbramento diário da torre dos Clérigos que se levantam vozes em mim que embora não sendo minhas absorvem-me, as cores escuras da reitoria como um caleidoscópio de desejos, e aquela fonte dos leões a lembrar-me o marulhar de intenções tão nobres como a nitidez de um futuro a que não pude fugir, por pressão do meu bem-estar, de toda a projecção da minha pessoa nas outras, o contentamento mórbido de ver a reacção dos indivíduos às linhas tortas em que nenhum dedo de Deus escreve direito e uma paixão tão infinita à anatomia da nossa espécie, interpretar o desenrolar de milhares de anos de evolução que nos transformaram nestes bichos imperfeitamente perfeitos aos olhos de todos. E é enquanto passo por este espectáculo da natureza citadina que penso em ti, tio, nas palavras sentidas que deixei pendentes nas cordas vocais e que agora me entristecem por não terem destinatário fisíco, o que eu dava para te ver na minha frente a inclinar o ouvido bom, pois a audição já te andava a trair no outro, e te diria em sincronização de orquestra sinfónica em surdina:
- Palavra de honra que gosto de ti, tio.
O sorriso que me lançarias bastaria, as palavras pesadas de amor entre tio-sobrinho nunca foram devidamente pronunciadas entre homens valentes como nós. Esquecemos, entretanto, que o corpo nos provoca partidas e quando o teu coração, uma coisa pouco maior que um simples punho fechado vê lá tu, te silenciou naquele início soturno da manhã do dia vinte e oito de Dezembro às 6h18
(nunca me vou esquecer, nunca)
fechou-se uma porta em mim, uma agonia de laços familiares que eu julgava impenetráveis e que se abalaram sem, no entanto, se esfumarem. Vivem em mim os abraços, os gestos, essas memórias tão espessas com uma impressão digital que para sempre cobrirá a minha pele. Às vezes, em casa, em frente da televisão a espreitar o futebol agora sem sabor, penso:
- Ai o nosso Benfica, tio.
Para logo se elevarem as vozes que embora não sendo minhas absorvem-me no teu tom de voz inconfundível:
- Ai o nosso Benfica, Fábio.
E subo diariamente até à reitoria enquanto me deslumbro ao chegar ao lado do hospital de santo António, entrando na escola que me fará um dia vestir com dignidade a bata branca que tanto orgulho te daria. Recordo o último sorriso que me largaste. Penso em ti e sorrio da mesma maneira enquanto passas as mãos pelos meus ombros, ajeitando-me a bata, numa alegria entretida que não necessita de sons.
- Palavra de honra que gosto de ti, tio.
E gosto muito.
Tio.


fs

16.12.08

E toda a gente é contente porque é dia de o ficar


Pensar é escrever com as letras da imaginação. Acto supremo de ser outro estando mais próximo de si.
Talvez quem me escreve os poemas é outro que, de tão diferente de mim, é cada vez mais eu. Talvez, por isso, tenha sido outro a escrever um poema, ainda para mais em inglês, que encontrei nas últimas páginas de um caderno da faculdade e que não me recordo como foi lá parar. E é um poema incomensuravelmente simples e ingénuo que alguma coisa quererá dizer, nem que seja que há alturas em que o melhor era ficar quieto:

I started a poem
And then I saw
That my door was closed.
So I thought I was not a poet.
But in the Christmas’s night
I felt a star shining over me
And then I saw
My mighty heart
landing in the deepest dream.
I'm a poet.

Mas há outros, esses sim, que, de serem tantos, ajudam-nos na medida do possível a sabermos quem somos:

Chove. É dia de Natal

Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor.
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.

Fernando Pessoa, 1930



fs

5.12.08


Clarões no quarto
luzem no escuro que trepa pelas paredes,
ofuscam a humidade cinzenta que mancha o estuque liso.
No meu quarto
há madeira poeirenta e inócua
presenciando uma janela para o mundo exterior
que guarda estantes volumosas e simples.
No meu quarto
há livros múltiplos
que se arranham nas prateleiras,
chorando no silêncio.
No meu quarto vivem
corsários negros salvando donzelas,
baleias gigantes habitando os oceanos,
pessoas procurando a identidade
que os lusitanos conquistaram aos deuses.
Vivem bons malandros sorrindo
à mulher em branco que desliza.

No meu quarto vazio habitam multidões.
E eu acomodo-me no meu lugar na estante.
Plácido como uma página por ler.


(o que quer que isto seja)


fs