24.12.09

pedra-carne, uma canção

são muitas as mãos que já cá estiveram
a reboque dos esqueletos exaltados
os postais da noite, mil pássaros da escola
eu sei das tuas impressões como caixas de Pandora
que algum dia virás pedir permissão
para andares comigo a envelhecer na passarola

subir ao cais e contrariar a teoria heliocêntrica
mais que rondar o sol temos uma outra órbita
temos andado a declamar anos-luz em que fomos memória
amizade, intriga, dois quilómetros de pele na história
em que eu questiono as iluminações de Natal que te fiz
na sarjeta a dar-te um beijo na bochecha, acanhado e petiz

pedra-carne, se somente fosses o entardecer dos quadros
em que não te consigo ver,
pedra-carne, se fosses o único poema
que eu temo não conseguir ler

um queixo caído, nunca fomos a Azurara
também nunca te consigo diferenciar em Ishihara
ou nos movimentos tépidos nas correntes de neve
não me lembro da tua casa, talvez um recinto de estepe
debaixo do azevinho, encoberto nas nossas expirações
caro nos ficou abrir o peito a silenciosas divagações

existe um lugar a que ainda não demos nome
situado entre os meus olhos e os teus
uma fronteira que vai daqui ó deus tão longe
às últimas constelações de um dia que não foi hoje
não custa enumerar, não custa fincar
tanto mel tanta luz tanta morte a recordar

pedra-carne, se conseguisses ser estátua
e fosse eu o teu homem-expedição,
pedra-carne, se fosses território em pousio
e eu não tivesse para te oferecer mais que este chão

dormir ao relento com os pés frios de fora
ignorando cartas que não lemos e que não vão embora
mandámos abençoar a aurora dos mil pássaros
que nenhum fique para trás assim esperamos
desconhecemos futuras teorias futuras órbitas
entendemos amarguras, passarolas e um novo esvoaçar

queira o frio da época uma nova ceia
e não conceberemos em nós qualquer freio
há-de vir um novo intervalo por inteiro
catalogar intempéries nas estantes dos livros de pó
deixarei crescer a barba de velho, deixarás pender as rugas
viverás em mim a espessura de muitos milénios

pedra-carne, se retirasses de mim a lógica
e da fala todas as falácias que há,
pedra-carne, se fosses a terra de uma campa
que os nossos corpos nunca albergará

pudéssemos ser, eu e tu, pedra-carne, uma longa canção
e que nunca houvesse cansaço em repetir o refrão



(um feliz natal e um bom ano
é o pouco que daqui vai)

9.12.09

Pulmões cheios de lírios

{o rascunho inicial pedia o título
Da textura dos lírios das tuas mãos fiz um pneumotórax

não lhe farei a vontade,
é o chamado poema descartável:
serve para nos irmos esquecendo
da maneira correcta de o recordar

e por isso é que é difícil recordar
a maneira correcta de esquecer
os lírios das tuas mãos}


às cinco da tarde,
na ribeira,
aguardei os teus passos,
o sacrário da tua voz.
na ribeira,
às cinco da tarde,
não cheguei a ouvir
nem o arrastar do teu perfume
nem o sapateado do teu andar.

a tua ausência foi preâmbulo,
o meu jogo de xadrez inacabado,
uma garatuja de desenho queimado.

nessa hora que tardava
a minha consciência despojada
na água fria debaixo da ponte:
um colapso de pulmões cheios de lírios
em refracções proscritas de uma visão surda.

disseram depois
que no meu corpo encontrado nas margens
a tua fotografia no peito colada,
o teu nome nas mãos desenhado,
um cheiro a lírios jubilado.
pasmados ficaram
e devolveram o meu corpo ao rio
em direcção à foz.
queriam que o mar apagasse
as marcas da ausência do teu andar
que o sal afagasse
o retorno à calidez dos dias sem memória.

mais não se poderiam ter enganado
na aspereza das probabilidades.
encontrei num lugar etéreo
tão lúgubre tão díspar tão só
um novo estado basal.
e atónito abri os olhos.

às cinco da tarde,
tu não compareceste.
e julgava eu ter-te esperado,
mas nem o meu corpo apareceu,
nessa ribeira que cheira a lírios.



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2.12.09

duplo III


saber cair
a terra para te enterrares
saber levantar
rouba-a aos montes dos outros
saber morrer
enterra essa amargura
saber sair
perspectiva novas limonadas
saber saber
não te deixes salpicar por novas poeiras

nada saber é tão fácil para saber tudo