23.5.09

Crónica dos leões

Porto, Praça dos leões, 7 de Outubro de 2008

Para os leões,


É a fonte mais imponente que os meus olhos jamais almejaram observar. O estatuto soturno dos leões, de boca fechada agora pois a água não jorra, as pessoas que estacam numa firmeza de amparo, espantam-se um pouco e retomam a pasmaceira dos dias.
Saí há minutos das aulas. O Instituto provoca em mim um orgulho desmesurado quando estou dentro das paredes frias de pedra e vejo o frenesim de batas brancas a circular, aprendendo a salvar o mundo do seu destino por quinze minutos que seja, evitando, sem remédio, o avanço da entropia nos corpos outrora jovens ou daqueles que, ainda frescos de vida, tropeçam nas artimanhas do tempo. Dentro dessas paredes sou um mastro de uma caravela da iniciação tão formosa que não é difícil insuflar-me de dignidade.
O meu mal é quando me vejo fora da claustrofobia benéfica dessas paredes. Foge-me a motivação e sinto-me um pano roto que necessita de remendos. E só a fonte dos leões me observa se eu cair.
Todos os santos dias, ao sair das aulas, deposito a minha alma na fonte e deixo-a de molho ao cuidado dos leões soturnos. E todos os dias um novo fôlego. As outras pessoas, pobres obreiras de uma colmeia sem fim, resignam-se e porventura passam ao lado da fonte sem os mimar. Talvez por isso estejam encardidos. Não é a oxidação natural que lhes faz isso, é o desleixo eterno de ninguém os admirar como eu nesta tarde ventosa de início de outubro.
(um dia escreverei só alegria para saberem que também fui feliz aos poucos)
Sinto-me mudo ao ver este quadro escultural. As vozes que não são minhas e que pairam sobre mim fogem tão sorrateiramente num abrir de boca de espanto. Só a caneta e o papel me ajudam a recordar o ponto de exclamação perene.
E a água que continua a não brotar em jactos felinos. Tenho de seguir, tomara que a vida fosse passada a observá-los. A maior dádiva que este Porto recente me ofereceu.
Vislumbro o sol que incide no peito bravo dos felinos valentes.
Dispo-me da minha alma.
Amanhã é sempre um bom dia para regressar.




fs

9.5.09

Três escritos Queimados e outras quinquilharias (3)

III

O cão lambia os rostos
Dos enfermos que repousavam, embriagados,
Nas superfícies rugosas.
Nas patas trazia o cheiro a malte e a cola seca
No estômago os restos de uma noite para tantos azarada.
Vagueava, aventureiro, no espaço baço dos que ficaram
Sem conseguir regressar a casa
Arfava no meio dos corpos e todo o seu respirar
Era purificação dos organismos embebidos em cerveja.
A todos lambia a face e recebia um sorriso
Daqueles que perecem durante um ano
Sabe o cão e sabem eles
Que nas voltas e voltas do tempo
Terão tempo para ali voltar.





fs

6.5.09

Três escritos Queimados e outras quinquilharias (2)

II

Jantei sozinho no escuro da sala
A refeição que teima em não me tirar a fome
Escrevi com os olhos o teu nome na parede em frente
E em silêncio mastiguei a tua aparência incólume.
Na rua agitam-se os passeios, levantam-se bandeiras e gritos
E eu passo ao lado disso como passei ao lado dos que já foram.
Talvez ir à varanda gritar o teu nome
Que persiste no céu da minha boca
Mas tudo isso é pavio empobrecido em cera pegajosa.
De que me vale uma lembrança de ti
Senão um passado que jamais será futuro?
Corre uma luz nas minhas veias
que não encontra aurícula onde desaguar
como a refeição que teima em não me tirar a fome.
Há pouco jantei sozinho no escuro da sala
E limpei o teu nome da parede
Vesti o traje negro e saí para a rua.






fs

3.5.09

Três escritos Queimados e outras quinquilharias (1)

l

Haverá um dia em que eu morra sem conhecer os sulcos do teu corpo
Ou um dia polvilhado de lamúrias pedindo sorrisos
Em que todos as gincanas, por mais profundas e esquivas
Me escondam os rodeios dos teus medos.
Será nos dias que se aproximam, em serenatas surdas e insufladas
das maiores das concordâncias ténues, que eu saberei que haverá um dia
em que eu morra sem conhecer os sulcos do teu corpo
Vestirás a capa sombria que nunca me apagará debaixo da luz
Que carregamos em separado. E os holofotes içados em gruas
Levemente concordam na injúria de nos levar o tempo.
Na claustrofobia das salas onde repousam esqueletos vivos
Falta-me a necessária descrição dos teus carpos pousados sobre os meus ombros
(escafóide, semilunar, piramidal, pisiforme,
trapézio, trapezóide, grande osso, unciforme)
Cabe em nós a maior das hecatombes
Haverá um dia em que deixe de escrever tudo aquilo que não querias
E na impossibilidade de acabar este poema
Resta-me chegar ao último verso,
Fechar a porta entreaberta em surdina
E colocar-lhe um

Fim.




fs