23.11.09

A melodia dos esquissos #7

Muse - Soldier´s Poem



dois dedos de conversa adiada
é a mímica dos incautos,
como tivemos a imposta luxúria
de partir sem a mágoa do regresso?
quisemos tanto o nosso que é de todos
que hoje de pouco valem as genuflexões
e as cartas caligrafadas com saudade.
que assim como nós perdoamos a quem
não nos tendo ofendido
algum pecado terá subvertido
pois andamos com uma bomba na boca
duas facas nas mãos calcificadas
e apregoamos a justiça
num auto-de-fé mediático.
esquecemos a humidade da casa,
as coxas da nossa mulher
e não mais dormimos
no aconchego ancestral e íntimo
da posição fetal
(é o peso da medalha baça no pescoço)
antes o tédio da bandeira
sem cores sem hino
somos as nações desunidas
criando trincheiras nos mapas.
viemos salvar o mundo do apocalipse
destruindo-o a preceito,
ó general sem rosto:
my name is john doe,
tenho guerra nas vísceras
e um avião fretado
para levar me levar no caixão
etiquetado sou um zé-ninguém.
sei de ti ó sem rosto tão pouco
sabes de mim a nulidade
contudo, matei por ti e vi morrer a alvorada,
até deixar o meu país acanhado
e o meu cadáver para a família o chorar.
(é o peso da medalha baça no pescoço)
talvez a minha pátria não chegou a ser minha
nem a liberdade jamais me foi servida
então que o meu corpo não seja revolta póstuma
e do pescoço me seja retirado o ignóbil certificado,
símbolo da minha vida ostracizada aos tiros
como um vaso condutor da ilusão.
fui para ti canhão humano
mina traiçoeira para mitos ulteriores
hoje sei-o pela certa:
que o mundo,
mais que os soldados,
precisa de tradutores,
nem que seja só para te informar,
ó general sem rosto:
je sais que mon coeur est froid.

15.11.09

Texto indefinido #6



Não venhas, no avançar da noite, perguntar-me quem fui, como se pelo meu passado desvendasses o meu presente e futuro, como se pelas memórias e lembranças deslindasses o que serei. Não tentes, com a tua selvagem curiosidade que raramente consegues conter - dependendo dela como da respiração - saber o que significam as antigas marcas do meu corpo e as linhas penosas que me trespassam o rosto, sinónimos profundos de um tempo que não deixou saudades em mim.
Não venhas, repito, tentar conhecer-me pelo que agora não sou, não insinues que ao desenterrar raízes profundas saberás os meus precipícios que, ironicamente, não são mais do que as meras superficialidades do poço que escavo. A minha memória é uma alcova queimada, as minhas acções são um raso quadro negro. Ainda te lembras dos sítios onde fomos ternura precoce?

O Senhor Indefinido

10.11.09

Biblioteca Municipal II

A outra consideração desta visão conjunta.

Quando pela primeira vez te vi, através das lentes iluminadas dos meus óculos, vasculhando a estante de literatura russa, logo ali conclui que não ficaríamos dissociados. Assim que senti a tua mão pesada raspando as capas dos romances e os olhos fantasiados embrulhados numa página sem fim, ficou evidente que os nossos espíritos, a vontade que nos cobre os corpos, haviam descoberto a sua sepultura, o bálsamo dos dias, o descanso voraz da pasmaceira inquieta do quotidiano. E nunca duvidei, nestas coisas não vale a pena reflectir em porquês, nada há a divagar: naquela estante consumou-se a fusão dos seres de vista curta. Se houve determinismo ou livre-arbítrio nos protagonistas desta simbiose é irrelevante. Pergunte-se a Baltasar porque ama Blimunda: porque sim, dirá ele. Pergunte-se a Blimunda porque ama Baltasar, ele que até perdeu uma das mãos por terras de Espanha: porque sim, dirá ela.
Faz-me, então, a tua pergunta.


fs

1.11.09

Os espelhos e os reflexos

textos retirados da série "espelhos e reflexos", publicada a conta-gotas quando a vontade e a capacidade assim o permitem, no Jardim de Micróbios.



#29

Há dias estive para morrer. Na mesma semana em que a minha mulher fugira, na calada da noite e deixando-me um bilhete na mesa-de-cabeceira, com o coveiro da aldeia. Esfaquearam-me de lado no peito, na rua escura da taberna onde, numa propulsão de álcool, os amigos imaginários respondiam ao apelo. Estive para morrer e só me ocorria que, à custa da minha maldita mulher, não teria pelo menos uma cova feita pelo homem que ao retirar a terra fresca me enfeitava os cornos secos. Sozinho pasmei vários minutos aguardando que o corpo por fim se imobilizasse. Até que vozes trespassadas e distantes juntamente com o barulho difuso de uma ambulância me arranharam a consciência. Raciocinei, na medida do possível, que apenas uma morte ridícula seria uma singela justificação para a relatividade de uma vida equiparada a uma vindima sem cachos de uva. A minha morte seria ridícula o bastante. Na maior das contemplações principiei a rir a bom som. À medida que me enfiavam na ambulância, no preciso momento em que se preparavam para fechar a porta, através das minhas gargalhadas, reparei em dois homens no lado de fora observando-me. Um velho de cabelos brancos a fumar e um jovem de colete-de-forças mordendo na boca um frasco de vidro. Num sussurro rouco, o homem de cabelos brancos abordou-me:
- You are welcome...
- ...to Elsinore - gritei sem para de rir num estrondo de histeria.
O homem de cabelos brancos sorriu-me. De brilho nos olhos virou-se para o jovem de colete-de-forças e ordenou:
- Sá-Carneiro, larga o raio do frasco!
O jovem anuiu e o velho retirou-lhe da boca o frasco cor de caramelo, atirando-o para longe, ouvindo-se um estilhaço de cacos de vidro no alcatrão.
- Lá se foi a minha estricnina - lamentou o jovem de risco ao meio no cabelo, em tom tremido.
Contemplámo-nos os três - não me recordo de qualquer enfermeiro ou médico. Em olhos reveladores rebentámos numa erupção efusiva e estridente de risos convulsos.
Alguém fechou a porta. A ambulância agitou-se. Para lá dela irrompia a voz do jovem de colete-de-forças cantarolando:

" -Quando eu morrer batam em latas
Rompam aos berros e aos pinotes -
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza:
A um morto nada se recusa
E eu quero por força ir de burro..."

Não sei se cheguei a morrer. Ainda assim, continuo a vaguear em peregrinação, todas as noites, à taberna onde faço amigos. Quanto à minha mulher e ao coveiro - dizem as más-línguas -, mudaram-se para o norte e vivem muito felizes.


#28

Possuir amigos imaginários é absolutamente imprescindível para enfrentar a realidade ou o que dela nos chega. É um bálsamo para a dureza dos cotovelos doridos, produto cosmético competente na erradicação das olheiras. Recomenda-se, a todas as crianças - e, por isso, ao futuro adulto - um amigo imaginário. Melhor que óleo de fígado de bacalhau. Devem ser concebidos, os imaginários, na mesma frequência com que o flúor é dado aos rebentos na escola primária. Prioridade nacional na educação do povo: ajudam a saber viver, diminuem o gasto anual de morfina pelo serviço nacional e saúde e - há quem finque a pés juntos - atenuam o sofrimento de cessação da vida.


#27

Na paragem de autocarro em frente do Hospital de Santo António, uma criança rezingona - um menino em altos brados - provocava na mãe, que lhe dava a mão, a maior das vergonhas aparentes. É o normal: inquietam-se com muita facilidade, não porque são menos resistentes, mas porque não sabem ainda camuflar aborrecimentos e tédios, não usam artimanhas ou esquemas para disfarçar para os outros que está tudo bem (a não ser em proveito próprio, que essa estirpe existe já com um sentido de gestão emocional dos pais de grande calibre). É uma virtude que, fora alguns casos futuros, não se deveria esmorecer.
Como a criança não acalmava e, tendo em conta o repúdio dos olhares pelo amordaçar da pequenada, a mão enveredou pela valente bofetada na bochecha, acção há muito aceite como lugar-comum. Mulheres enrugadas e outras viçosas acenavam afirmativamente. “Há males que vêm por bem. Ajuda a crescer”, dizia uma senhora inchada. A criança rebentou numa explosão de choro, daqueles incomodativos de tão estridentes. Um saudoso professor de filosofia, se presente, manifestaria a sua desilusão pelo insistente desvio do correcto sítio destinado para endireitar o comportamento ruim: o rabo. “A estrutura anatómica concebida para, entre outras coisas, receber o castigo parental”, diria, ajeitando a gravata.
No cruzamento de memórias espiraladas, assomou novamente a criança à visão. Não havia lugar para mais choro. Chegou o autocarro em que entrou ordeiramente com a mãe e, pouco antes do veículo arrancar, já distribuía sorrisos e caretas à progenitora de cara terna.
O esquecimento é, de quando em vez, uma boa virtude também.


#25

Pequenos apontamentos para um futuro testamento:

Quis saber escrever.
Falhei.
Quis saber ler.
Falhei.
Quis saber viver.
Morri.


#23

Vejo muitas vezes o eléctrico passar em frente, numa vertigem de nostalgia. Na imortalidade simbólica que tatuará as coisas do mundo com o meu nome, relembro as corridas que amiúde fazia na esperança do o apanhar na zona da Reitoria. A vida dividia-se entre alcançá-lo ou não. Nunca vi dicotomia que me representasse, inequivocamente, os meandros da minha existência. A dúvida acaba por não ser se existo ou não, quanto muito se consigo utilizar os meus membros para acompanhar o eléctrico. Por conseguinte, segue a ideia de que não posso negar a vida enquanto o eléctrico enfrentar o atrito dos carris. A soma dos nossos medos e vícios concorre com a velocidade do eléctrico. Quando perdemos a capacidade inata de o acompanhar, atrofiamos, e os músculos entorpecidos são o grito de debandada para a desintegração existencial – isto é, supondo a existência como válida, e não uma falácia de observação dos nossos sentidos (existem de facto?) tantas vezes agentes de camuflagem.
Correr é a solução. O eléctrico a meta. Contemplemo-nos, portanto, quais Carlos da Maia e João da Ega, vencidos que foram da vida, correndo em funções de estiramentos das cordas dos relógios. Lado a lado com o eléctrico e vencendo o atrito. Sempre vencendo o atrito.


#16

Não gostar de ler. Não gostar de escrever. Não gostar de estudar. Não gostar de cozinhar. Não gostar de amar. Não gostar de correr. Não gostar de sonhar. Não gostar de cinema. Não gostar de música. Não gostar de pintar. Não gostar de ouvir. Não gostar de ver. Não gostar de sentir. Não gostar de cheirar. Não gostar de sorrir. Não gostar de chorar. Não gostar de respirar. Não gostar. Não.
Não gostar de viver.


#15

Na estação do Metro do Campo 24 de Agosto dois namorados sussurram eternidades aos ouvidos de cada um. Há em tantos desses pares uma falta de amparo, uma pobreza de tacto, um desconhecimento de fatalidades mútuas. Como várias camadas sobrepostas em que se conhece apenas as iniciais. Como pele em que se tacteia a epiderme, mas de derme imersa em neblina.
Na estação do Metro esses namorados beijam-se. Nem ele sabe quem ela é, nem ela reconhece os lábios que acolhe.
Chega a carruagem. Entro e sento-me na maior das preguiças. Chega de pensar nos desígnios do amor.

#14

Mecanismo de contracção do músculo cardíaco:

Tu.