21.4.09

Anatomia de um corpo vencido


Meus sonhos confundem-me, têm chegado na calada da noite e usurpam da minha mente, deixam-me num simples corpo de carbono, células, tecidos, órgãos, sistemas e fazem-me perder o controlo. Duvido tanto de mim como dos outros. Talvez a experiência recente de morte próxima de um familiar querido tenha precipitado toda esta reacção: umas pontadas tristes no lado esquerdo, aquele mesmo que levou cedo quem ainda devia andar por aqui colocando-me a mão no ombro e lamentando as exibições pobres do Benfica. Tudo isto me fez crescer um pouco, sei agora o quão curto sou na escala no tempo, mas tem-me custado, esta realidade tão crua ainda não se entranhou em mim e vivo agora em ciclos de êxtase e frustração existenciais.
Sonho frequentemente com a morte e com a vida. Vejo-me como um ponto intermédio de um segmento de recta. E sonho, sonho, sonho….

Deitado na maca com um lençol branco a tapar-me o corpo pálido, oiço vozes mas não as diferencio. Uns holofotes brancos levando-me a uma cegueira luminosa, a sala escura em redor e todo um silêncio. Vislumbro homens de bata branca avançando sobre mim sem, no entanto, lhes reconhecer qualquer traço. Destapam-me o corpo frio. Um deles pousa uma mão com um bisturi sobre o meu peito e desliza-a, abrindo-me ao mundo exterior. Sempre fui homem recatado e cheio de segredos que me custa ver esta exposição do que sobra de mim. Eles não dão pela minha presença, fico estático para não os perturbar, tento manter os olhos quietos e ignorar qualquer dor, se bem que nem o corpo sinto. A certa altura as primeiras constatações:
- Baço com cor e peso normais, assim como o pâncreas.
Utilizam uma balança para medições rigorosas de todo este material biológico, retiram amostras que marcam em lamelas de observação, sinto-me longe de mim, entidade separada, talvez superior, do que aquele corpo alguma vez representou.
- Cor mais clara dos pulmões condizente com a condição de não fumador. Fígado com volume e peso coincidentes com a estatura e massa do indivíduo de aspecto caucasiano.
E apercebo-me que todo este medo é o de esquecer aquela mão no ombro e as discussões sobre o Benfica. Não, não esqueço. O Benfica, provavelmente, andará pior, mas aquela mão, o peso dela nos ombros a acompanhar-me o resto dos dias. É, pois, altura de avisar o senhor:
- Se não se importa, procure aqui deste meu lado esquerdo do peito e verifique que o que lá está ainda bate. É que faz tempo que lá não sinto nada.


publicado originalmente aqui, em Junho 2008



fs

4 comentários:

freespirit disse...

Também eu por vezes deixo de o sentir.

Abraço amigo :)

nietzsche disse...

...tenho um corpo ou sou um corpo?

Talvez o teu corpo ja não te pertença.

Cumprimentos

Anónimo disse...

muito bem escrito, e sobretudo deixa registada a memória de alguém que partiu mas que te marcou, o que se sente nas tuas palavras. procura do lado direito do peito a resposta :) beijinhos.

Graça Pires disse...

Um belo texto em dois registos. Um texto de quem sonha muitas vezes com a vida e com a morte.
Um beijo.