6.10.07

Dois corações debaixo da terra

Os dias são sempre os mesmos mas nunca se repetem. Desejá-los novamente é como esperar pelo Encoberto, esperanças desfeitas no espaçamento do tempo, um regaço vazio, é não ter nada para pegar, suster, imaginar suster, e quando assim é começamos a definhar cedo, ideias vagas, pobres a impregnarem-se nas células de memória, pensamos com demasiada reflexão, perdemos o instinto, comodamente instalados na poltrona da ociosidade, a podridão absorve-nos enquanto pensamos estar no auge e depois a queda é longa, silenciosa, não há ajudas, a senhora que se intitula de morte à nossa espera, vem amigo pagar o preço da vida, e nós, simples corpos de carbono e outros afins que havemos de fazer senão segui-la, ainda se saberá se a verdadeira dádiva é viver ou morrer, que avance a mente disposta a pensar nisto.
Foi numa noite de introspecção que alguém desejou infinitamente reviver um dia, um par de horas que de bom grado trocaria por todos estes anos de inutilidade que o haviam assombrado.
Nesse nostálgico amanhecer, o sol acordou preguiçoso, o crepúsculo a esfumar-se no horizonte, o Hospital de Santa Maria, frio e grotesco, a impor-se nos olhos, o homem das castanhas assadas a reclamar a fraqueza do negócio na entrada, a sirene de urgência de uma ambulância a irromper pela estrada, dentro levava mais um que desistira de existir, que se tentara eclipsar do universo. O rapaz de mochila preta esperou como combinado em frente da estátua do Egas Moniz, fazia tremores o suave vento matinal que atingia as pessoas. Aguardou na paciência dos minutos quando na sua vista se instalou aquela silhueta feminina.
- Margarida?
Um aceno afirmativo combinado com uma fragrância indescritível revelou-a tal como ela a via há anos, aquelas linhas esbeltas a definirem um rosto delicado, uns cabelos castanhos a caírem sobre a pele morena.
- Ainda bem que vieste, Margarida.
- Sim. Vamos?
Avançaram destemidos como animais de cativeiro a espreitarem a liberdade no virar da esquina, desceram para a estação de Metro, vazia àquela hora, abraçaram-se e beijaram-se com ternura, fisicamente eram dois porém a mente era só uma, assimilaram a coragem necessária para fazer o que iam fazer e aguardaram soturnamente pelo barulho indicativo da carruagem que rapidamente apareceu. As portas abriram-se lentamente como que a reprovarem as suas atitudes.
- Tens a certeza Fábio?
O rapaz passou a mão pelas costas dela e acomodou-a no seu regaço, enquanto a tivesse teria algo a que se agarrar. As portas fecharam-se com o som habitual, estavam selados nas suas próprias ambições. A carruagem começou a acelerar, assim como os seus corações, dois inseparáveis corações debaixo da terra, o vislumbre do túnel a espelhar-se nos olhos dele, um rumo que ele ambicionava sem fim.
- Claro, vai tudo correr bem, encosta-te bem a mim.
A ânsia de que os carris os levassem à estação que só eles conheciam e onde só eles poderiam estar e ser impediu-os de observar o destino a trocar-lhes as voltas, e nunca chegaram a sair na tal estação.
Hoje, e passados tantos e tantos anos, um homem de idade avançada, de mochila preta, aguarda todos os dias, à mesma hora, na mesma estação, a carruagem que o leve ao seu lugar enquanto negoceia com a morte o preço a pagar pelo seu atrevimento.




fotografia retirada da internet, sem identificação do autor


F.S.

1 comentário:

Mel de Carvalho disse...

uma viagem ao interior de cada um, um talvez audácia, um talvez atrevimento ...

gostei muito da viagem que hj por aqui fiz.

grata
Mel

PS: adoro a música. uma paz que acolhe. tão necessária a paz