10.10.09

quanto baste (5 de 5)

5.os abraços condicionados dos sonhos lúcidos.


Desceu durante cem anos o escadote para se manter no chão
e no horizonte viu fugir os sonhos mais altos, mais etéreos.
De tanta terra descer escavou um buraco mais profundo
que a sua altura para ele julgada desmedida.
Quando as escadas do proveito ambicionou escalar
nem os pés se levantaram nem o tamanho lhe valeu.
A vida não foi feita para se descer - disse um dia -
deixei-a escapar para o cimo dos armários onde já não tacteio.
E não morreu sem fincar o arrependimento bradado ao éter
de que os escadotes apenas servem para subir.

Donde hoje se conclui em abono da paciência
que quanto mais nos excedemos em virtudes
mais pequena a cova que o coveiro tem para abrir.
Felizardo será aquele que comunga do éter
a sapiência da mais nobre burrice montada
para uma diluição de cadáveres informes.
Não basta a solidão, não basta o silêncio,
nem todos os bens, nem um Deus misantropo,
falta tudo o resto, os resquícios de uma alvorada
em que dependurados clamámos por um amor infinitesimal.

E um braço esticado para o céu em misericórdia
traz nos pêlos eriçados alguns sentidos amadurecidos.
Caso haja alma penada existem sempre novas vindimas,
novas penitências, novas nomenclaturas para o pecado,
e em lugarejos apetrechados aparecerão peregrinações.
Incólumes permaneceremos à ambiguidade da fé,
escavando rectângulos de substâncias pérfidas,
aguardando tão-somente um vislumbre onírico
que não mais será que um abraço condicionado
de alguém com a ousadia de nos recordar os sonhos lúcidos.

1 comentário:

isabel mendes ferreira disse...

vindimando assim o discurso de uma peregrinação interior.....


tão lúcido quanto quase ascético.




o meu abraço.