22.5.08

Jardim de amendoeiras






Diz o senhor da empresa que a humidade me está a destruir a casa. Chegou hoje de manhã, nove horas ainda não deviam ser pois o Piruças não me chamara pelos gemidos para o levar à rua aliviar as entranhas. Bateu imponente na porta, discurso pronto de quem vem averiguar as condições de uma casa, a carta a avisar chegara uns dias antes: o meu lar tinha de ser averiguado, estava em risco de ruir. De modo que aguardei a visita dos senhores da câmara durante a semana, as primeiras pessoas a avistar há muito tempo. Os meus filhos não têm paciência nem gosto para me virem lançar um olá, por vezes mandam-me um dinheirinho, contudo, raras vezes:
- Como está, minha mãe?
Casaram-se, procriaram, multiplicaram-se, fizeram a vontade de Deus Nosso Senhor, esse mesmo que me guarda um lugar no seu jardim, nas minhas preces peço-lhe que quando me levar as amendoeiras estejam bem grandes, pinceladas de branco a florir na constante primavera do lar celestial, foi somente isso que lhe pedi. Acabo um Pai-Nosso passam dez minutos do fim do telejornal e, antes de dormir, repito, apontando para o céu (ele está em todo o lado, mas como é de noite estará porventura a recolher-se, a descansar):
- Ó Senhor, não te esqueças das amendoeiras.
E de certeza lá estarão à minha espera, não me faria tal desfeita.
O senhor da empresa entrou de sorriso amarelo e começou a averiguar, uns apontamentos num papel branco, um dossiê azul-escuro. Bufou quando olhou para a sombra latente no tecto, mais uns gatafunhos na folha. É a humidade diz ele. Fico espantada, velha como sou e ser a porcaria da água, que tanto me faz falta, que me está a destruir a casa. Palavra de honra que tudo isto me deixa transtornada. Se me mandarem para fora, para onde irei? Voltarei a ter o saquinho quente na cama, aconchegando os pés, o chá do jejum constante? Voltarei a poder ver os retratos do meu homem em novo, onde na guerra contra os pretos serviu e ficou a descansar eternamente, no meio de uma floresta qualquer nos subúrbios de Luanda? Não, daqui eu não saio. Daqui só me tiram para a cova.
- Oiça lá, o que vai acontecer agora?
- O que vai acontecer agora?! Minha senhora, vai ter de abandonar esta espelunca.
O aparelho do ouvido anda sem pilhas, lá tenho de questionar:
- O quê, senhor?
- Vai ter de abandonar a sua casa.
Inclina-se sobre mim para aumentar o som, oxalá não repare nas nódoas imundas no pijama, há muito que não lavo as roupas, e para quê, não saio de casa, não convivo, ando a definhar à espera de ingressar no meu jardim de amendoeiras.
- Eu daqui não saio.
- Não diga tolices, minha senhora.
- Ai não saio não, pode vir aqui quem quiser. Não andei a vaguear pelas veredas da cidade, criando filhos, chorando o meu homem em África, para agora ao fim de setenta e cinco anos me despejarem de casa que nem cães, respeito pede-se, quero morrer em minha casa, sou velha mas respeitem-me.
Acabei por expulsar o senhor da empresa com a vassoura de cabo partido pela porta. Depois de deixar o Piruças aliviar-se tranquei tudo o que é abertura em casa, enchi o saco de água quente e voltei para a cama. Roguei que o sono respondesse ao meu apelo e, quando chegou, pouco passava das nove da noite, rezei e repeti:
- Ó Senhor, não te esqueças das amendoeiras.
As pálpebras ficaram pesadas, a visão enevoada. Pouco antes de ceder fixei a humidade da minha casa, lembrei-me dos meus filhos, do meu homem a descansar em Luanda, do Piruças a lamber-me os dedos enquanto a memória se enfraquecia, e tenho a certeza que me cheirava a amendoeiras, tal como aquelas que, por terras do Algarve, viram uma catraia a correr beijando o vento.




fotografia retirada da internet, sem possibilidade da identificação do autor



F.S.



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