22.10.07

Depois da meia-noite


O mundo encontra-se diferente, sinto-o nos lamentos sonoros nos fundos das ruelas, no ladrar esforçado dos cães, na ociosidade dos gatos, no vento que sopra desleixado em todas as direcções, no clima que já não é o que era, no desalento das pessoas, nos velhos que não sabem quem foram ou nos jovens que não sabem quem serão, o rebentar das gotas de chuva é frouxo nas janelas das casas, as gargantas cheias de catarro, tosse, tosse e mais tosse, as pessoas estão mais sombrias, frias, olham-me de esguelha, não vá eu traí-las na rotação de um olhar, sussurram para não as poder ouvir, pira-te rapaz, deixa-nos, põem-me de lado, indicam com o indicador esticado o isolamento, enchem-se-me as vistas de humidade, olho-me no espelho, a barba por fazer a tapar-me a pele albina .
- O mundo já não é o mesmo, pois não, Margarida?
No silêncio estático aglutinas o momento, vejo-te no espelho como se fosses minha, só minha, sou um fingidor, as vezes em que te digo que não preciso de ti são as vezes em que te minto, como me sinto alterado, as minhas feições cada vez menos as reconheço, a minha identidade escapa-se-me pelos dedos, somente quando pouso as mãos na tua face me revelo a mim mesmo. Olho para o espelho todos os dias, e todos os dias vejo outra pessoa, outro indivíduo, diariamente:
-Ouve lá quem és tu?
E o indivíduo imóvel, as olheiras sepulcrais sem nada de novo revelar, condenando-me ao fracasso, o vazio da expressão proferindo sentenças implícitas
(ando a tentar escrever um livro e não sei se sou capaz, Margarida)
Comigo cabisbaixo, quebro num estrondo o maldito espelho que tanto me aflige, exteriorizo todas as vísceras mentais que me consomem na dor do momento e o alívio do sangue a escorrer-me pela mão a libertar-me de mim, deito-me no chão gelado da casa de banho e pouco me importo com o que serei, enquanto o tic tac vagaroso do relógio de parede anuncia a meia-noite.
-Amanhã faço anos, Margarida.
E elevo a rigidez dos membros, pousando as mãos como uma concha por cima do coração, certificando-me que ele ainda bate.
Depois da meia-noite.

F.S.

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