14.11.08

Fugir como o diabo da cruz


Há qualquer coisa de novo. Não sei o que será, mas há qualquer coisa de novo. Saio de casa de manhã bem cedo, o astro dominante ainda nem se ergueu, dorme para lá daquele pano azul uniforme. O vento manifesta-se vagaroso, os galos calados e mudos de gritos e lamentos matinais e um cheiro a terra, um cheiro a terra tão seca, tão estéril. Se um pó dela me invadisse logo eu como o padre Florêncio quando atrapalhado por uma tuberculose.
- Ó senhor padre, isso vai ou não vai?
- Vai mal, Artur, muito mal,
De maneira que o senhor padre fugiu desta terra árida como o diabo da cruz. Seria bonito vê-lo aqui inalando este bafo de terra, cara inchada, balofa de tanta tosse convulsa. Cheguei a pensar se algum dia lhe veria as tripas sair pela boca, tal era a aflição. Agora que ele desertou nem tripas de fora nem tosse convulsa, somente eu acordando cedo, antes do mundo, vislumbrando o pouco que os meus olhos enxergam.
Tiro o relógio de bolso que o meu avô me deu antes de morrer. Está parado. Às tantas inalou um pó desta terra e uma tuberculose levou-o desta para melhor. Foi-se. Estava a perder o uso de qualquer maneira, as cataratas estão a mergulhar-me numa cegueira escura intensa. Conheço apenas a noite. Vou para a cama e tudo já escuro. Amanhece lá fora, diz-me a minha mulher, e eu escuro.
Tenho este cheiro a terra por companhia, amigo que cala e consente, sempre constante, sempre árido, sempre ele. Por vezes apetece-me pegar na caçadeira, aquela mesmo ali debaixo do armário da despensa, tantos foram os faisões que caíram à sua conta e também o meu sogro. Acertei-lhe mesmo no lado esquerdo, pouco acima do coração. Esteja onde estiver nunca mais se lembrará de bater na filha, na minha querida Suzete. Estará a apodrecer no cemitério, espero, a chorar cada nódoa negra infligida. Dizia eu que me apetecia pegar na caçadeira e mandar uns tiros para o ar, para que o cheiro a pólvora me lembrasse justiça.
- Não voltas a bater nela, meu cabrão.
O estrondo, o cano de ferro incandescente, o sentimento de dever cumprido.
- Foste desta para melhor.
O pior é quando a cabeça fica fria. Constato que a caçadeira, para bem de mim e da Suzete, deve permanecer silenciada. Cada vez mais é difícil encontrar um lugar onde não se peça o catálogo do passado. Havia de ser lindo vasculharem-me o longínquo de mim, encontrarem uma gota de sangue e uma caçadeira ao lado informando: Aqui jaz Alfredo Guerra, meu sogro e o maior dos cabrões. Veja-se o apelido dele e dirá tudo. Não, não posso descuidar-me, resta integrar-me:
- Senhor Artur, como vão as cataratas?
- Muito mal, vizinho, muito mal.
Esperar que a aparência faça o seu trabalho, pintar máscaras é o meu ofício, fazer-me um deles neste mar de peixes onde todos se comem uns aos outros.
Se porventura algo desviar o meu caminho é sempre tempo de fugir como diabo da cruz. Por isso que ninguém me engane! Há qualquer coisa de novo. Não sei o que será, mas há qualquer coisa de novo.





fs

8 comentários:

hora tardia disse...

há. há sempre este novo.



que não engana. antes nos arrasta para um contar diferente.


beijo, grato, por este momento.

freespirit disse...

Cada vez melhor, faça-se justiça à tua evolução.

Não fugir de um destino que queremos que exista: o da escrita.

Abraço (estou realmente extasiado)

José Pires F. disse...

E damos por nós a ler, com prazer, quem sabe escrever.

Mais um muito bom. (excelente?…)

Abraço.

Graça Pires disse...

O que há de novo é este jeito de contar. É um parazer ler-te. Um abraço.

Anónimo disse...

obrigada.




beijo.




________________.


imf.

hora tardia disse...

bom fim de semana!!!!!!!


___________________.



abraço.

Mel de Carvalho disse...

muito boa leitura a que aqui nos deixa.

abraço da Mel

Anónimo disse...

:))))))))))))))).


saber esperar.



.


beijo.

(obrigada)



.piano.