12.9.08

Emancipação


Vive por aqueles que já partiram. Aqueles a quem a faca do destino cortou a fita da meta tão cedo, tão inesperadamente. Aqueles que num alento esforçado esticaram a cabeça para ver mais alto, não apalpar o cimo dos armários às cegas, não o tacto do pó misterioso, mas para ver ao mesmo nível. Orgulho o de um dia estar ao mesmo nível do tecto dos armários. Ficar hirto, não levantar a cabeça para os sonhos nem apontar o queixo para as desilusões que circundam pelos pés. Só em frente. Tão-somente.
Vive sem o peso da tua consciência amordaçando-te os braços. Depende de ti abrir o cofre que escondes dentro do que és. És sabedor do código, das chaves. Não és demagogo, filósofo muito menos. Delimita a fronteira que te desampara: homem das ciências apaixonado pelas letras ou obreiro das palavras atraído pelo método científico. Abandona a mármore fria que te gelou o fogo. Enerva-te, crava as unhas nas costas e pernas, irriga-te de intencionalidade, de motivação. Inicia a tua procissão, transforma-te na fonte que anseias. Começas um capítulo e não sabes como o findar? Paciência, inicia o próximo que não poderá ser pior do que o primordial. Persiste no erro, ele é o alicerce da perfeição, engrossa a estrutura, cimenta o solo em que te poisas. Acima de tudo não hesites porque enquanto o fizeres viverás amputado de objectivos, os sonhos tornar-se-ão enxaquecas alucinantes de desagrado existencial. Mesmo que acordes de olhos esbugalhados e cintilantes, perderás continuamente o barco. E aí não necessitarás de nenhum conhecimento do inferno uma vez que andarás escuro, amorfo. Displicente será a forma como, esbofeteado pelo anormal, insurgir-te-ás contra o intransponível, o muro blindado que estabeleceste em teu redor. O grito que sair das tuas cordas vocais será mudo e aí acabou.
Pessoas dizem-te que chegou a hora. E chegou. Sem levantar questões, sorrateiramente, ergue-te. Abandona a segunda pessoa do singular e integra-te na primeira. Primeiro que tu está o eu. Reinicia-te. Torna-te numa tábua rasa que, pela primeira vez, usa os formidáveis sentidos. E não tenhas medo, nada temas.
Aproveita para começar agora:
- Olá, chamo-me Fábio Videira Santos
Repara na maneira como te olham, normal é o adjectivo, afinal és um deles:
- Tenho oitenta e um anos invertidos
Não reveles muito de ti, só o essencial, a nossa verdade são os nossos segredos, mantém o rigor e vais ver que a iniciação corre bem.
Um conselho? Sê sincero:
- Não sei quem fui, não sei quem sou, não sei o que serei.
Chegou o tempo de saltares do sofá da pasmaceira.


fs

3 comentários:

isabel mendes ferreira disse...

carta a um poeta?


carta a um filho? carta a cada um de nós todos?


_____________carta.


texto. lucidez. abraço.

freespirit disse...

Saltar para a vida com o sonho na mão.

José Pires F. disse...

Enquanto lia, veio-me à memória Rilke, nas “Cartas a um jovem poeta”.

Gostei. Imenso.