15.9.07

Crónica de um adeus anunciado


O tempo é composto de mudança. A barba recente que me cobre o rosto é sinal disso mesmo, uma mudança que veio para ficar, obrigando-me a ser mais independente, autónomo. Tudo isto tem sido difícil, não só porque não sou muito expansivo, mas também porque não consigo dar espectáculo de mim mesmo a quem não conheço. Introvertido e tímido, talvez seja isso que me chamam, não o nego, não gosto que me definam, que me marquem, definir alguém é sempre um perigo, dizer que este é aquilo ou aquele é isto é passível de erro e a constante metamorfose do homem é prova disso. Os outros, a quem a barba não falta, esbranquiçada pelo passar do tempo, não poupam esforços e incessantemente repetem, bem ao meu ouvido:
- Nunca te esqueças de onde vieste!
Como me poderia esquecer do sítio onde acordei um dia para a vida, para o prazer de viver e pensar, o sítio onde um dia me revi e reiniciei todo um processo criativo em meu redor, fazendo da vida a minha obra de arte? Ninguém me poderá proporcionar tal sensação de liberdade, tal êxtase de saber que posso impor os meus próprios limites, que tudo o que me rodeia é uma extensão da minha mente e que nunca compreenderei o mundo se não me compreender primeiro.
- As tuas raízes estão aqui!
E eles a persistirem, avisando-me que parte do que serei se deverá ao que aqui fui. De facto, muitos passarão o futuro, tal como agora, a tentar desvendar a sua existência – a maior tragédia é não saber o que fazer à nossa vida, alguém o disse e com razão. Da mesma maneira, aqueles que já manifestem uma predisposição para um determinado talento vingarão nas letras, na música, nas artes, na ciência, ou mesmo aqueles que, magicamente, já conseguem ocultar a verdade serão possivelmente os políticos de amanhã da nossa saudável democracia, com todo o respeito pela classe política e por quem domina claramente a arte da ocultação da verdade. Para ver o que acontece, temos de esperar: ou aguardamos que o destino faça das suas, nada mais fazem os deterministas a não ser esperar o que está delineado e traçado, ou, para bem das nossas consciências, esperamos as consequências e circunstâncias que advêm das nossas deliberadas acções. Não há nada melhor que o nosso livre-arbítrio. Paciência, portanto.
E agora, enquanto eu passo pelo portão e vejo as grades a enferrujar (envelhecer era o que se devia dizer pois o tempo também passa por elas, não só por nós) avisando-me que o mesmo me vai acontecer a mim, não sei o que pensar, o que sentir. Olho para trás, sabendo, isso sim, que um dia passaria uma última vez por aquele portão. Chame-se-lhe um adeus anunciado, um adeus que começámos a esboçar aquando da primeira vez que ali entrámos. E acaba aqui esse adeus. É tempo de olhar para a frente, no futuro não faremos outra coisa.
F.S.

2 comentários:

freespirit disse...

A tragédia do adeus, do último, envolve-me de mágoa e nostalgia.

O rotineiro tempo de indiferença é potenciador de mágoa na percepção desse adeus. Desse adeus a algo a que poderíamos ter dado mais valor. Um olhar, um sorriso, uma personificação própria.

E o que me faz ver tudo em tudo, e imaginar tudo o que quero em momentos tão rotineiros como o tempo, é o medo da perda de memória, da perda de afecto a algo de que vou sentir a falta.

Viver é arte!

Continua a fazer a tua arte :)

abraço.

Anónimo disse...

Este texto tem muito que ver com o que aprendi no teu blogue, ao longo dos pensamentos, das palavras, das ideias, das reflexões, dos dinâmicos comentários que dele fazem parte e que tanto me deram que pensar.

Sem dúvida, viver é arte!
(continua também a fazer a tua arte, os teus esquissos!:D )

Abraço
( F.S.)