30.4.10

Uma infância vista de cima (4 de 20)

{tatuei as minhas mãos nas paredes}

no segundo piso perdido numa cadeira
abri o corpo ao ar profundo.
deixei-o estar em mim num doce instante
(da mesma maneira que se saboreia
o açúcar dos dedos)
e não senti o meu corpo colapsar.

o ar no resto da cidade
inunda o cérebro de sujidade
nem tristeza nem felicidade
em tudo fracasso, letargia, capacidade.

dói-me a máscara mentirosa
em que escondo azedos rebuçados
fora, todos os sorrisos e todos os pleonasmos
nesta falsa peça onde sou um actor fracassado.

{cansado fiquei a olhar para a parede
não me lembro da primeira cor das mãos}

25.4.10

duplo VI


contra a força do fugitivo
um escárnio de quem vê de fora
algemas de ardor e de medo
uma mancha num verso de elegia
a família que vai sozinha para o degredo
na terra muitas valas de lamentação
não há perdão para este enredo
de tantos pés sem homens
são estas as estrias dos mal-aventurados
em arcaicos lençóis freáticos

fica a fraqueza dos que ficam a guardar a entrada do fim


20.4.10

Uma infância vista de cima (3 de 20)

{de qualquer jeito
a Terra do Nunca
deve crescer
nas nossas falanges}


questiono-me
se todo o corpo é escravo da intenção
como uma voz autoritária no escuro
toda a estrutura de uma canção
que em volta de si ergue um muro.

e se há o acaso de saber
se nenhum comportamento é aleatório
nem a sua realização o caos
se vivemos num silencioso dormitório
e embarcamos na realidade em naus.

{falange, falanginha, falangeta}

10.4.10

Uma infância vista de cima (2 de 20)

{tenho os bolsos tão cheios
como cheio é o tanque de casa
onde pirralhos saltamos de imaginação}


por vezes penso se sou humano
alguma linha curva na estrada
uma estátua de amores bombardeada
um sol escondido todo o ano.

argumento aos chefes cá de baixo
que o lugar onde me plantaram
é muito fundo e onde acabam
as estórias fechadas num cacho.

se num engano vem a virtude
e aos poucos o lusco-fusco,
então sei de antemão as latitudes
dos corpos sepultados pelo crepúsculo.

{talvez a arte de esquecer a noite
com a pigmentação da alvorada
e não gostar de sair da cama}

1.4.10

Uma infância vista de cima (1 de 20)

{este é um prefácio de espadachim
para as encruzilhadas da minha história}


perguntou-se ao menino
uma conta de multiplicar
e o pobre garoto de ar felino
ripostou que só queria sonhar

colocaram-no na mesa das inquisições
na tentativa de o corrigir
só que ele assobiava canções
de uma esperança que está para vir

encostaram-no entre a espada e a parede
porque os sonhos não são para ser sonhados
mas o valente não se fez à rede
manteve-se hirto e de olhos esbugalhados

fechado no escuro o mantiveram
na tentativa de lhe mudar a vontade
não sabiam o bem que lhe fizeram:
iluminar-se de razão para a posteridade

{ser um poema-criança,
não saber mais que assobiar}