22.2.09

A melodia dos esquissos #5

Silence 4 - Eu não sei dizer


Não se surpreenda o estimado leitor se a mão daquele sujeito, que além se encontra numa mesa de carvalho a escrever tremulamente, não o souber guiar. Repare na maneira, isto é, não pode reparar, apenas eu – a consciência daquele mesmo indivíduo – o posso enquanto ele assim o permitir. Contudo, imagine que, por alguma razão desconhecida (são sempre as razões desconhecidas a justificar a falta de talento), daquela caneta azul pendente não sai nada que um mísero tostão valha. Irá certamente o estimado leitor retorquir que este fatalismo afecta qualquer um que tenha como ofício escrever. Engana-se, desculpe que lho diga. Aquelas rugas fincadas na testa são o corolário de horas de perda de capacidade criativa, de uma inequívoca incapacidade do sujeito sair de dentro do seu próprio corpo e de se expandir com a volatilidade necessária à criação literária. Quando as palavras são bruma e a tela um cemitério de vozes mudas, o escritor não se eleva. Àquele sujeito morreu-lhe a voz. A principal: a do amor ao próximo.

(Sabes, Inês, aquelas noites tão longas que damos connosco a contar a nossa vida ao silêncio? Vivo, agora, cheio dessas empreitadas nocturnas. No escuro do meu quarto, apesar das vozes da rua (as prostitutas exclamando o desgosto de um negócio, traficantes de droga vendendo de mão beijada a alma ao diabo sempre presente), só a minha soa anacrónica. Fecho os olhos à escuridão que me vigia e deparo-me com um breu mais prepotente do que o exterior.
Temo que o saibas melhor do que eu. Tu, nessas órbitas faiscantes, vês cores que o espectro que sou nega.)

Se ainda aí estiver, estimado leitor, ouvirá porventura um coro da tragédia. Na luz trepidante há uma fugacidade de sussurros, de estalidos periclitantes, a mão ágil do sujeito perde-se com espasmos involuntários de soluções inadvertidas. Caso curioso o da luz precisar do escuro para saber que existe, como o escritor que precisa das palavras para saber que por alguma vez já existiu. Espero não o confundir, caro leitor, com deambulações inquietas: no cérebro ninguém manda ou pode, deixá-lo, pois, ir pelos caminhos que impõe. Talvez seja isso a criação que o sujeito, aquele que se encontra além numa mesa de carvalho a escrever tremulamente, ambiciona. Por vezes, nem a nossa própria consciência sabe o que queremos. O que custa é desejar escrever o presente e não a memória, e todo o pequeno pedaço de presente é, em si, um pedaço de passado que teve irremediavelmente de ser guardado na memória para depois ser relembrado. Sim, é isso que o aflige: escrever, no presente, o amor ao próximo.

(No auditório, Inês, tenho a oportunidade única de te dizer, de te dizer, de te dizer, de te dizer. Hesito. E nunca digo. O cachecol bege, as mãos fechadas que se assemelham a uma textura de lírios e um aroma agradável e fugidio de químicos que encerram uma inenarrável compostura. Em ti me enquadro, de ti me fujo.
Eu não sei dos fantasmas que fui, eu não sei dos fantasmas que sou. Eu não sei dizer. Nunca soube. Expandir o meu corpo para fora de si, largá-lo ao desejo do vácuo – todo o amor perfeito necessita de vácuo – não me é facultado. Sou uma escala de cinzentos que não soube apanhar no teu sopro as tonalidades esbanjadas em sorrisos deleitados. Não, eu não sei dizer.)

Chegámos à altura do cair do pano. Na desistência consciente está a glória dos vencidos. O sujeito vai chegar à última linha do esboço que vai rasgar pouco depois. Mantém-se morta a voz que existiu no outrora corpo capaz. Vai tentar, na última frase, arredondar o círculo torcido. Olhe, então, isto é, olho eu – a consciência que o vai deixar no momento em que aplique o derradeiro ponto final.

(Ouve, Inês, naquelas horas em que tudo arde e eu sou cinza, em que tudo é uma morte anunciada, eu hei-de amar-te.)



fs

9.2.09

No fundo da rua de S. José


No fundo da descida há uma toca escondida
acariciada pela luz branca que a mancha.
E os pinheiros bravos ao som do vento assombrando
a calmaria que de tão calma se agita.
E existem fósseis de sonhos perdidos
isolados em estratos dos tempos vencidos
onde beijos sentidos
deram origem a rebentos reconhecidos.
Uma garagem, um covil de sombras
cheio de silêncio imune
é alicerce da pirâmide da esperança
adornada de frustrações.
No exterior, na pálida relva se espelha
o sangue e o suor das mãos que a construíram.
Nesta toca sou macho dominante,
tudo possuo e nada tenho.


fs