23.7.08

Biblioteca Municipal


(escrito num intervalo de cinco minutos)

Andava a ler literatura russa. As portas da biblioteca municipal escancaravam-se e logo ele sentado na mesa de madeira transversal à estante. Cuidava que não podia deixar de existir sem entranhar as sábias palavras dos sábios russos. Portanto, deixou-se desvanecer dos propósitos sociais da vida, unha e carne com a lombada poeirenta dos livros expostos à espera que os avivassem. De vez em quando um funcionário preocupado com a sua alimentação ou falta dela trazia-lhe uma sandes de queijo. Ele aceitava, não desviando uma nesga a atenção das páginas pálidas de tão amarelas. Às sete e meia o segurança agarrava-lhe um braço e expulsava-o rotineiramente. No dia seguinte o ciclo recomeçava.
Ela apareceu nas últimas semanas da sua proeza, escondida debaixo dos óculos de massa pretos. Acariciava os livros com mãos delicadas, roçava-as nas capas dos romances. Escusado será dizer que da mesma e não raras vezes ingénua maneira, acariciava-lhe os lábios e a face em goladas de ar húmido. Pelo menos era o que, no instinto de macho sustido, o agoniava.Não se precipitou. Ao fechar o último livro tomou-a nos braços como carne impressa editada para ele. Acariciou-lhe os lábios e roçou-lhe a face. Afinal de contas, apenas tinham Dostoiévski, Tolstói e o resto dos sábios como testemunhas.


fs

5.7.08

Texto indefinido #1


Escrevo porque não me consigo definir. É nas palavras sussurradas para a minha mão que procuro algo que, sozinha, a razão não consegue. Daí escrever: dar um suporte físico à razão, dar-lhe um corpo membrado que, com o tempo, poderá levá-la a sítios até então inimagináveis para mim.
Passo, pois, a acomodar todas estas pequenas reflexões, devaneios, ironias, contradições, paradoxos, ilusões, alegrias, questões num sítio onde se juntarão. Talvez, com o tempo, e com o tempo nunca se sabe como é, a sua fusão desbrave todas as indefinições que me rodeiam. Cada um é uma labareda de um fogo imenso que me consome. Como uma estrela até gastar toda o seu combustível para depois morrer. O mais certo será eu falecer sem alguma vez vislumbrar a resposta que reúna tudo. A minha Teoria do Tudo. Qualquer que seja o rumo que a minha vida leve, jamais será outra coisa que não a escrita que me libertará. O trabalho, a família, o amor, os desencontros e encontros existenciais, nada fará sentido sem a caneta, tantas vezes trémula, na mão. Facilmente se constata, e não o receio de qualquer maneira, que, socialmente, estou condenado a observações cuidadas do comportamento humano sem ousar roçar no puro sentimento. Tenho a firme certeza que invariavelmente passarei os meus dias numa agonia existencial, uma total falta de realização pessoal (é uma pequena, mas inabalável, certeza que carrego). Contudo, terei a razão na retaguarda apoiando-me, traduzindo sentimentos vazios em realidades arrebatadoras. Cada homem é um fruto da imaginação, e, por sua vez, progenitor aguerrido de criação imaginativa. E é graças a esse ciclo que perduro.
O meu espírito é tão inquieto e instável que, num futuro próximo, é possível que não me reveja em qualquer destas palavras acima escritas. A culpa será da metamorfose que o tempo me provoca. Perdoe-se este ser estranho.

O primeiro texto indefinido.


textos carinhosamente oferecidos pelo Senhor Indefinido.

fs