20.2.08

Cego de visões


Garridos, curtos e estonteantes,
São os sonhos de quem os sonhou.
Perdi a conta de quem os montou tão fascinantes,
Mandar perturbar o homem que, de tanto ver, cegou!

Dizer que a pobre retina distorcida
Pecou por exagero de visões
É negar a armazenada história cognitiva
Deste homem que, no coração, só tinha alçapões.

E perdoe-se a este senhor cego
Pretender ver o que não se pode perceber.
Que se prenda no seu peito o temível prego
Dos avisos da ambição a temer!

Porque em tudo nestes ensaios existenciais camuflados de vida
Se ignora a destapada e pérfida ferida.

E tudo
Contudo, tão pouco,
Se resume a dar o dito por não dito.

F.S.

5.2.08

Pergunta dos dias e um espelho embaciado


Levantas-te a meu lado, bocejas com os braços em arco, esticas a coluna, bocejas mais um pouco, arregalas os olhos para mim, como se eu fosse novo, o quarto novo, a vida remodelada, a cada novo dia ergues-te da cama e sempre
- Que dia é hoje?
Relembro-te a data, esboças uma indisposição, não é o que esperas ouvir, soubesse eu a resposta e de pronto te mentiria, só para não te ouvir
- Que dia é hoje?
Calada ficas, silenciada e muda pelos desejos que se escapam pelos teus dedos, à noite afundas-te na bruma dos sonhos esperando acordar na espuma do universo que anseias, aconselho-te calma, mas exaltas-te, peço-te frieza, mas apoquentas-te. Quando acordas agora com a cabeça adormecida no meu peito, murmuro
- Deixa-te ficar no calor dos lençóis.
Mas a paciência foge-te, levantas-te e vais-te barricar na casa de banho, oiço a água correr, o vapor quente dispersando no quarto, parece-me que cantas no duche, uma música dos anos sessenta que tanto relembras com nostalgia e que ressuscitas no compasso de cada decisão (o teu cabelo comprido, as sandálias simples, como te gosto de ver assim), Sinatra a correr nos teus lábios, sempre gostaste dele, das pausas arrebatadoras, das melodias enternecedoras, emocionas-te do começo ao fim da actuação, chegas arrasada de um dia de trabalho e o disco dele a girar nas trinta e três rotações
- Se eu cantasse assim não me gastaria no escritório a fazer contas de somar e subtrair.
Arrasto a porta que nem um ladrão antes de abrir o cofre, entro no banho e acompanho-te na aceitação que surge de ti, puxo-te o cabelo nas minhas mãos, cheiro-te pois tudo me parece breve, roço o meu corpo no teu, sei que me pedes firmeza, sussurro elogios rasgados, não são estas as palavras que saem, mas cada gemido, gesto, toque soa a um sincero
- Amo-te,
Mas não necessito de to dizer, tu sabe-lo, oiço-te baixinho soltando monossílabos de prazer instantâneo, arranhas-me a pele molhada, por vezes na saciedade de sermos um só não te reconheço, ter-te como espelho da minha vontade, passo a mão no teu regaço e não me revejo, eu sou outro e tu outra, sopras-me nos lábios, eu acaricio-te a face branca como cal que sempre me mostraste, penetro nos teus olhos
- Como é que me vês?
Saio entorpecido do duche, arrepio-me enquanto nós dois limpando o espelho embaciado, tu sem curiosidade, não te interessa saber quem és pois foste toda a gente menos tu, por isso, em cada dia, na alvorada
- Que dia é hoje?
Porque querias saber quem encarnar nessa vez, que alma incorporar no auge das relações, e a mim não me causa qualquer transtorno, desbravava-te a cada duas voltas no relógio de cuco da sala de estar, assim te aceitei, assim te reconheci como minha e assim temos vivido, sem zangas, apenas amor, olhares, gestos, sussurros, delírios da manhã, delírios da tarde, delírios da noite, refrescando este amontoado de sistemas que somos. Afinal sei a resposta a cada
- Que dia é hoje?
Só não me atrevia a retorquir-te
- Sabes quem eu sou?
E se me respondesses
- Não,
Eu saberia que seria mais um dia feliz.
Mais um.
F.S.